29 de julho de 2020

O Eterno Marido - Fiódor Dostoiévski


Literatura Russa
Título Original: Vechnyj Muzh
Tradutora: Marina Guaspari
Editora: Nova Fronteira
Edição de: 2017
Páginas: 176

39ª leitura de 2020

Sinopse: Fiódor Dostoiévski foi um dos maiores romancistas da história, e seus mergulhos psicológicos na alma humana deixaram grandes marcas na literatura. Publicada em 1870, a novela O eterno marido é considerada uma de suas criações mais poderosas e perfeitas, com uma veia humorística mordaz e uma compreensão profunda do trágico e do cômico. Nela, o autor russo descreve o encontro quase surreal de um viúvo traído com o amante de sua esposa morta. Passando por temas como moralidade, amor erótico, tortura mental e neurose, a obra revela a genialidade de Dostoiévski.




Depois de ler Crime e Castigo (e ter me apaixonado pela história!) é claro que eu criei grandes expectativas em relação aos outros livros do autor. Talvez por isso não tenha apreciado tanto assim a história presente em O Eterno Marido

É um livro curtinho, de menos de 200 páginas. Trata-se na verdade de uma novela, e nos traz a história de dois homens que se conheceram no passado e que supostamente foram grandes amigos, mas não se veem há nove anos, tendo cortado por completo os laços, sem nenhuma explicação ou desentendimento. 

Alexei Ivanovitch é um homem perto dos seus 40 anos, que está atormentado por conta de um processo para receber determinada herança. Como é bastante ansioso, vive interferindo no trabalho de seu advogado, que já não o suporta mais, além de ir pessoalmente perturbar os funcionários da Justiça, atrapalhando o andamento do próprio processo com seu comportamento. 

Dado à melancolia, Alexei acredita que nada dá certo em sua vida, reclama do apartamento que teve que alugar durante o tempo necessário para acompanhar o tal processo e se envergonha muito de ter decaído. Antes era alguém importante, que fazia parte da alta sociedade, mas ao arruinar-se financeiramente (mais de uma vez) não podia mais frequentar os mesmos espaços, nem mesmo comer onde realmente desejaria, tendo que se contentar com uma vida menos luxuosa. Tudo isso contribui para provocar alterações no seu humor e na sua forma de encarar a vida, o que também considera ser culpa de sua "velhice" (pois por estar perto dos quarenta anos já se considera um idoso). 

"[...] deve haver no Além quem se preocupe com o meu estado moral e me mande estas malditas recordações, estas 'lágrimas de arrependimento'! Seja! Mas isso não adianta; é pura perda. [...] Que adiantam as recordações, se nem mais ou menos consigo emancipar-me de mim mesmo?"

Nas últimas semanas, ele mal conseguia dormir, sofrendo constantemente de insônia, e quando era possível dormir era comum ser atormentado por pesadelos. Como se não bastasse, havia uma inquietação que parecia não querer abandoná-lo. Do nada, se via lembrando de coisas do passado... de momentos nos quais tinha feito coisas que prejudicaram a vida de outras pessoas. E isso o irritava demais. Não sabia por que aquelas lembranças resolviam retornar agora. De que adiantavam? Não se arrependia. Se pudesse voltar no tempo faria tudo de novo, certo? Mesmo assim, a inquietação permanecia, tornando cada dia um inferno. 

Ele sentia que a real causa para toda aquela perturbação era o desconhecido. Sim, o homem que encontrara na rua mais de uma vez. Cinco, para ser mais preciso. Como se o estranho o estivesse perseguindo, como se o conhecesse e buscasse alguma coisa. Por mais que tentasse, Alexei não conseguia recordar se ele era alguém do seu passado, se havia algum motivo para estar atrás dele. 

"Dentre os vários pensamentos que lhe cruzavam a mente, um lhe causou sensação particularmente penosa: a quase certeza de que o homem de luto outrora o conhecera intimamente;"

O reconhecimento só acontece quando o estranho, no meio da madrugada, vai até o apartamento de Alexei. É aí que, ao ver-se cara a cara com o homem, ele lembra exatamente de quem se tratava. Pavel Pavlovitch, seu amigo do passado. O amigo que ele não via há nove anos... desde que parara de "dormir" com a esposa dele. 

Não entendia o que Pavel poderia querer com ele. O homem estava de luto, como a fita em seu chapéu evidenciava, e logo Alexei descobre que Natália, a esposa de Pavel (e sua ex-amante) falecera poucos meses antes. A notícia não lhe provoca nenhuma dor, pois há muito tempo não pensava mais em Natália. E tudo o que lhe preocupava era a possibilidade de Pavel ter descoberto a traição e ter ido ao seu encontro para se vingar... Seria possível? Depois de todos aqueles anos? 

Tudo se complica quando Alexei descobre que seu antigo amigo não estava na cidade sozinho. Que viera com uma filha pequena. Uma criança cuja idade levantava a possibilidade de ela ser... sua filha. 

Eu tenho que concordar com a sinopse do livro: o reencontro entre Alexei e Pavel é, no mínimo, surreal. A maneira como o marido traído se comporta nos faz pensar que ele estava completamente maluco, que a morte da esposa o fez perder por inteiro o juízo. Ao mesmo tempo, pensamos que ele está interpretando um papel, que existem motivos secretos para ter ido atrás do seu "amigo", que ele descobriu a traição e está planejando alguma vingança assustadora. E conforme prosseguimos na leitura mais desconfiados ficamos. Só esperando pelo "grande momento". 

"Você é um monstro e, em consequência, em você tudo tem de ser monstruoso: seus sonhos e suas esperanças."

De modo algum eu gostei dos personagens. Tanto Alexei quanto Pavel são duas pessoas detestáveis, que não nos provocam nenhum sentimento bom. Ambos eram capazes de fazer coisas horríveis, sem se importar com o outro, pensando apenas no que sentiam e desejavam. Ao longo da leitura e das descobertas que vai fazendo, Alexei aparentemente começa a se transformar, mas é algo que não vai se mostrar verdadeiro, para minha profunda irritação. Quanto ao Pavel, ele só me provocou ódio. Não havia desculpas para a maneira como ele tratava a pequena Lisa, a menina que o chamava de pai, que acreditava ser sua filha e não podia ser condenada pelos erros da mãe. 

A única personagem que me provocou carinho foi a Lisa. Vendo aquela criança tão aterrorizada e mesmo assim desejando estar ao lado do pai, eu senti uma revolta enorme. E o que acontece depois... Não posso contar para não dar spoilers, mas posso dizer que eu quis acabar com o Pavel. E não, falar da Lisa não é spoiler, pois tudo isso está basicamente no início do livro. A história em si trata da estranha relação que se estabelece entre Alexei e Pavel após o reencontro deles

Em resumo, é uma boa história, mas apenas isso. Vai abordar questões psicológicas como em Crime e Castigo, mas não da mesma maneira. Os protagonistas são confusos, com vários problemas interiores, vivendo um inferno dentro de suas mentes. Um inferno provocado por eles mesmos, claro. Mas eu não lamentei por nenhum dos dois. 

Há também um certo suspense e umas cenas um pouco assustadoras no livro, por conta do mistério envolvendo o reaparecimento repentino do Pavel na vida do Alexei. Assim como o ex-amante da mulher do outro, nós leitores não sabemos com certeza se o outro não descobriu a traição, se não terá aparecido atrás de vingança. E aí teremos todo o suspense e algumas cenas perturbadoras. 

Não é um livro que eu recomendaria para quem deseja conhecer o autor. Se eu tivesse começado por ele provavelmente não sentiria vontade de ler suas outras obras. Mas como meu primeiro contato com o autor foi através do maravilhoso Crime e Castigo, ainda pretendo sim continuar lendo suas outras histórias, mesmo não tendo me encantado por O Eterno Marido


-> DLL 20: Um livro de autor russo


27 de julho de 2020

Úrsula - Maria Firmina dos Reis



Literatura Brasileira
Editora: Penguin & Companhia das Letras
Edição de: 2018
Páginas: 224

38ª leitura de 2020

Sinopse: Obra inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula é um dos primeiros romances de autoria feminina escritos no Brasil. Maria Firmina dos Reis, mulher negra nascida no Maranhão, constrói uma narrativa ultrarromântica para falar das mazelas sociais decorrentes da escravidão.

Tancredo e Úrsula são jovens, puros e altruístas. Com a vida marcada por perdas e decepções familiares, eles se apaixonam tão logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho para concretizar seu amor. Combinando esse enredo ultrarromântico com uma abordagem crítica à escravidão, Maria Firmina dos Reis compõe Úrsula, um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina, em 1859. Por dar voz e agência a personagens escravizados, é vista como a obra inaugural da literatura afro-brasileira. Retrata homens autoritários e cruéis, mostrando atos inimagináveis de mando patriarcal e senhorial em um sistema que não lhes impõe limites. Com rica introdução e contextualização histórica, esta edição de Úrsula celebra uma das autoras mais importantes da literatura nacional e conta com estabelecimento de texto e introdução de Maria Helena Pereira Toledo Machado e cronologia de Flávio Gomes. 




Este é um livro do qual eu não sabia o que esperar e que se tornou um dos meus favoritos. Como é que eu ainda não conhecia esta autora???!!! 

Faz horas que terminei a leitura e ainda estou atordoada. Este livro mexeu profundamente comigo. Mergulhei na leitura e em tudo o que acontecia... como se fizesse parte da história, como se estivesse acompanhando tudo de perto. E isso me atingiu em cheio. Porque é um livro doloroso. Que machuca o leitor. 

"Cadeia infame e rigorosa, a que chamam - escravidão?!... E entretanto este também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo." 

A história começa com o encontro inesperado entre Túlio, um jovem escravo que no fundo do seu coração sonha em ver-se livre das crueldades da escravidão, e Tancredo, um homem branco atormentado por traições familiares que desestabilizaram toda sua vida. Tancredo é salvo por Túlio após um acidente na estrada e, profundamente grato por alguém ter se importado tanto com ele como aquele desconhecido, busca conseguir sua liberdade logo após se recuperar. É a partir daí que entre os dois surge uma linda amizade, que os uniria até o fim de suas vidas. 

É para a casa da pobre Luzia B. que Tancredo é levado para se recuperar. Ali, a mulher vivia com sua filha Úrsula e seus dois escravos, Túlio e Susana. Doente, presa à cama há muito tempo e piorando dia após dia, Luiza é tomada pela angústia diante do provável destino de sua filha, que sem ela ficaria completamente só num mundo que nunca tinha sido bom para nenhuma das duas. O alívio vem com a chegada daquele desconhecido, que se apaixona por Úrsula e a pede em casamento. 

"Úrsula, eu vos amo! E se vossa alma simpatizar com a minha, meu coração vos tem escolhido para a companheira dos meus dias."

Tancredo não tinha nenhuma intenção de se apaixonar. Depois de todo o sofrimento que tinha suportado por conta da dupla traição provocada por aqueles a quem tanto amava, não acreditava que voltaria a abrir seu coração para o amor. Só que ao ver aquela jovem tão gentil e bondosa, que cuidava dele com tanta dedicação enquanto ele se recuperava, foi impossível não se apaixonar. Dormia e acordava pensando nela e não poderia simplesmente ir embora e esquecê-la. Precisava dela em sua vida.

O sentimento era recíproco. Úrsula, que até então desconhecia o amor, também se apaixona por Tancredo e sonha com o dia em que se casarão. Com a benção dada por sua mãe nada poderia impedir aquela felicidade. Nada poderia separá-los... exceto a obsessão e a maldade de um parente que tanto mal já tinha causado e retorna disposto a ter a jovem para si... mesmo que ela seja sua sobrinha. 

"Juro, mulher, que hás de ser minha esposa, ou o inferno nos receberá a ambos."

Num período da história do Brasil no qual a escravidão ainda existia, roubando a liberdade e a vida de milhares de pessoas, é que os acontecimentos deste livro se passam. Tendo como pano de fundo o romance entre Tancredo e Úrsula, o livro aborda as crueldades e injustiças da escravidão, bem como o machismo que oprimia e destruía mesmo as mulheres supostamente "livres", numa sociedade patriarcal na qual elas não tinham reais direitos, na qual não tinham voz. 

Quem inicia esta leitura achando que vai encontrar apenas um romance recheado dos elementos tão presentes no Romantismo se engana completamente. Sim, temos o romance melodramático entre o jovem Tancredo e a pobre Úrsula, duas pessoas apaixonadas e condenadas pela crueldade de seus familiares, cujo destino não parece que será feliz. Todavia, o livro vai muito além disso. É como se o romance entre o casal protagonista nem fosse o principal. A autora apenas usa a história deles para falar da escravidão, da violência sofrida pelas mulheres, das injustiças de sua época. 

É um livro que nos dá um golpe atrás do outro. Quando achamos que nada mais nos fará sofrer, lá vem mais um acontecimento doloroso para nos encher de revolta, de ódio, para nos fazer querer entrar na história e acabar com nossas próprias mãos com pessoas que nem são dignas de serem chamadas de seres humanos. Nos perguntamos como alguém consegue ser tão cruel. Como um ser humano é capaz de fazer coisas tão horríveis com seu semelhante! Muitas cenas nesta história me provocaram desespero, me fizeram pensar em todas as vidas que foram marcadas e destruídas pela maldade da escravidão. 

"E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade!" 

Túlio e Susana. Apesar de serem supostamente os personagens secundários, são na verdade os mais importantes de todo o livro. É através deles que a autora aborda a escravidão. Através de suas dores, de seu passado, das marcas físicas e emocionais que carregam. Susana era mãe e esposa em sua terra natal. Tinha família, amigos, toda uma vida de felicidade e liberdade antes que os europeus surgissem em seu caminho, antes que a sequestrassem e trouxessem para o Brasil, lhe roubando tudo o que ela tinha, rindo de suas súplicas, de seu sofrimento. Quando ela conta como foi a travessia, o tratamento desumano que acabou matando muitos dos africanos antes mesmo que a viagem terminasse, é impossível segurar as lágrimas. 

Basta nos colocarmos no lugar dessa mulher, nos imaginarmos perdendo tudo o que temos, todos os nossos entes queridos e sermos levados para sermos escravos de outras pessoas, como se fôssemos objetos, como se fôssemos uma coisa qualquer sem sentimentos. Basta nos imaginarmos passando por tudo isso para sentirmos o desespero, a impotência, a desesperança. O capítulo dedicado à Susana, no qual ela nos conta tudo o que passou durante e após o sequestro, o inferno de "pertencer" a um desgraçado sem coração, é o capítulo mais emocionante e importante de todo o livro. E só ele já valeria toda a leitura. É triste saber que uma preciosidade como este livro foi condenado por tanto tempo ao esquecimento. Que a autora foi quase que "apagada" da nossa história, da nossa literatura. 

"Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão."

A dor da Susana me perseguiu durante toda a leitura. Fiquei imaginando o que aconteceu com a família dela, com seu marido e sua filha. Será que se lembravam dela? Que mesmo depois de todos aqueles anos ainda tinham a esperança de reencontrá-la? É tão horrível pensar em tudo o que ela passou. Ver como ela já não acreditava mais que pudesse ter outra vida, outra chance. Embora ao lado de Luiza e Úrsula ela não sofresse maus-tratos, era impossível apagar da memória tudo o que sofreu nas mãos do irmão de Luiza e depois nas mãos do marido dela. Nunca poderia esquecer nada daquilo. Todas as mortes que assistiu... como os seus semelhantes foram torturados até a morte por aqueles que se julgavam superiores apenas por causa da cor da pele. 

"[...] mas a dor, que tenho no coração, só a morte poderá apagar! - meu marido, minha filha, minha terra... Minha liberdade..."

Túlio também perdera muito para a escravidão. Nascido escravo, teve a mãe arrancada do seu lado ainda muito pequeno, vítima da crueldade do irmão de Luiza, que para se vingar da irmã descontou boa parte do seu ódio em quem ela mais gostava. Susana fez todo o possível para suprir o vazio deixado pela mãe da pobre criança, fez o que pode para que ele não sofresse, para que não conhecesse a verdade do destino daquela que lhe deu à luz. 

Ao encontrar Tancredo e salvar sua vida como salvaria a de qualquer semelhante, jamais imaginou que o outro o trataria com tanto respeito, com tanta consideração, como se fossem... iguais. E era exatamente assim que Tancredo o via: como seu igual, seu irmão. Ele abominava a escravidão e logo trata de conseguir a liberdade de Túlio, de quem se torna grande amigo. Embora gostasse muito de Luiza e Úrsula, Túlio nunca teve uma relação de amizade com alguém, nunca foi tratado daquela maneira e a relação entre Tancredo e ele se torna muito profunda. Eles passam a estar sempre juntos, se protegendo e ajudando mutuamente. Eu achei simplesmente linda e verdadeira a amizade entre os dois. Daquelas raras, sabe? Que quase não vemos mais hoje em dia. 

"A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar!" 

Além de abordar profundamente o tema da escravidão, mostrando claramente como era bárbaro e desumano uma pessoa escravizar outra, como aquilo ia contra todos os ensinamentos de Cristo (a autora fala muito dos ensinamentos de Jesus ao longo da história), ela também nos traz a questão do machismo e da violência contra a mulher. Pense só nisso! Um romance abolicionista publicado em 1859, VÁRIOS ANOS ANTES do fim da escravidão. Escrito por uma mulher. E mulher negra. Um livro que além de ser abolicionista, também fala da violência contra a mulher numa sociedade que de modo algum iria querer que alguém falasse com tanta clareza de temas nos quais ninguém queria tocar, que fingiam que não existiam. 

"É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura."

Para falar da opressão sofrida pelas mulheres supostamente "livres" naquela sociedade patriarcal, a autora contou a história de três personagens: a mãe de Tancredo, a mãe da Úrsula e a própria Úrsula. Através das lembranças do mocinho conhecemos os tormentos que sua mãe vivia nas mãos do marido, que era autoritário e violento, e tratava de fazer dos seus dias um completo inferno. Era alguém que, pelas próprias palavras do Tancredo, sentia prazer em fazer a esposa sofrer. Tudo o que aquela mulher tinha de felicidade em sua vida era a proximidade com o filho que ela tanto amava e é justamente por isso que o pai trata de mandá-lo para longe, para romper o laço que o unia à mãe, para causar mais dor à mulher. 

E aí temos a pobre Luiza. Que foi contra a própria família para se casar por amor, mas acabou presa a um homem que só lhe trouxe desgraças, que torturava os escravos lhe causando imensos sofrimentos, que era extremamente cruel e desumano. E como se não bastasse isso, ainda tinha que suportar o ódio de seu próprio irmão que, revoltado por ela tê-lo contrariado ao se casar com alguém que ele desprezava, trata de atormentar mais seus dias, principalmente depois da morte do marido, quando ela se vê completamente desamparada num mundo hostil. Seu próprio irmão a deixa na miséria e dia após dia lhe provoca mais dor, mais privações, mais sofrimentos. Paralítica e presa numa cama por conta de sua doença, ela não tem sequer um segundo de paz, pois sabe que sem ela, Úrsula ficaria sozinha nas mãos de um parente que só tinha ódio no coração. 

"Frágil, e já sem forças, eu vi Fernando à cabeceira do meu leito como se fosse o anjo do extermínio a falar-me de coisas, que só me poderiam abreviar os instantes."

E Úrsula também se vê vítima do poder e da maldade de um parente. Esse tio (Fernando) que tanto mal já tinha feito contra a própria irmã resolve que está "apaixonado" por ela e que ela irá se casar com ele por bem ou por mal. Porque ninguém jamais vai contra as suas vontades. Ele era seu tutor, seu dono. Ela tinha que fazer o que ele quisesse ou não viveria. 

Através da históra dessas três mulheres, a autora nos faz refletir sobre a situação desesperadora de tantas mulheres naquela época. Que se viam sob o poder de seus maridos, pais ou irmãos, que não tinham voz, que eram caladas e subjugadas. É horrível acompanhar seus destinos... Eu conseguia ver os olhares de dor daquelas mulheres, como aqueles que deveriam protegê-las eram quem mais sofrimento lhes causavam, que destruíam suas vidas. Dói dentro de nós a cena na qual a mãe de Úrsula diz que seu irmão regressou apenas para abreviar ainda mais os seus dias, para terminar o que ele tinha começado anos antes. O pavor que ela sente quando ele aparece... Não consegui parar de pensar em todas as mulheres vítimas de violência por seus próprios familiares. Que eram vítimas no passado. E seguem sendo nos dias atuais, pois em pleno século XXI a violência contra a mulher ainda é um dos nossos maiores males, uma das principais causas de morte de mulheres em nosso país. 

Este é um livro simplesmente precioso. Que todos deveriam ler. É essencial para a nossa literatura, um clássico digno de ser considerado um. O talento da autora é incontestável. Sua narrativa é profundamente envolvente. A história flui naturalmente, nos provocando uma confusão de sentimentos, nos fazendo sofrer com as injustiças e ansiar por um final que nos dê alívio, que conforte nossos corações. 

Por fazer parte do Romantismo, tem todo aquele "exagero" típico dos livros desse período, mas eu confesso que sou uma apaixonada por este tipo de narrativa. Amo o sentimentalismo que transborda, as cenas e diálogos intensos, que nos possibilitam sentir tudo com os personagens. 

Úrsula é uma história que eu recomendo muito! Eu a li numa leitura coletiva promovida pela Kelly do canal Aventuras na Leitura. Ela criou o Clube de Leitura - Clássicos da Literatura Nacional, no qual leremos um livro por mês. O projeto inicialmente irá até dezembro. Para saber como participar basta clicar AQUI. O livro escolhido para agosto é Capitães da Areia, do Jorge Amado. 



-> DLL 20: Um livro de capa laranja



18 de julho de 2020

Histórias de Amor - Rubem Fonseca

Literatura Brasileira
Editora: Companhia das Letras
Edição de: 1997
Páginas: 136


37ª leitura de 2020

Sinopse: O título romântico deste livro dificilmente enganará os leitores de Rubem Fonseca. São histórias de amor, certamente, mas sem o sentimentalismo convencional do gênero. Na ficção aguçada desse grande prosador brasileiro, amor e morte estão sempre presentes. Nestas histórias, de inquientante ambiguidade e humor ferino, um lado claro (humanidade, compaixão, ternura) e outro escuro (angústia, dor) se contrapõem em perturbadora harmonia.




Esta foi minha primeira experiência com as obras do Rubem Fonseca e posso dizer que já estou traumatizada.kkkkk...

Pela sinopse eu já sabia que não encontraria no livro uma coletânea de contos de amor, que de "histórias de amor" o livro não tinha nada.rs Mesmo assim, fiquei em choque, pois de modo algum esperava por personagens e histórias tão... tão... perturbadores.

São ao todo sete contos, sendo o último o mais longo. No primeiro, temos um homem sofrendo uma imensa dor pela iminente morte de seu ente querido, que esteve ao seu lado por quase duas décadas. Esta foi a única história do livro que pude considerar como realmente uma história de amor. Fiquei muito tocada pelo sofrimento do personagem e desejando que a morte não ocorresse, que algo impedisse aquela tristeza, aquele adeus tão definitivo.

Já o segundo conto nos causa um choque e uma revolta enormes. Nele temos uma víbora, uma mulher perversa e vingativa, que pede ao namorado que mate uma criança, porque ela quer fazer a mãe do menino sofrer. Conseguem acreditar em algo assim?! Eu quis entrar na história e acabar com essa desgraçada! Mandá-la para o inferno de onde ela não deveria ter saído!

No terceiro conto temos um pai que decidiu nunca voltar a se casar depois da morte de sua esposa e que mandou a única filha para um colégio interno, no qual ela poderia receber toda a educação e atenção que ele não poderia lhe dar. Ele ia com frequência visitá-la e quando ela se formou e cursou a faculdade, tudo o que ele quis foi que sua filha estivesse ao seu lado por um tempo e depois pudesse se casar e dar a ele o neto que tanto desejava. Este pai havia descoberto que tinha pouco tempo de vida. E queria passá-lo com sua única filha. Só que essa filha tinha planos muito diferentes para sua própria vida...

No quarto conto, um assassino de aluguel é contratado para matar uma mulher. Ele não sabia os motivos, não perguntara. Só deveria fazer seu trabalho e sumir. Nada de muito complicado. Só que... ao conseguir um emprego na casa dela e passar a conviver com aquela atormentada senhora, que estava sendo aterrorizada constantemente e se acreditava louca, ele começa a se sentir incomodado, pois em tudo ela o fazia recordar a mãe que gostaria de ter... É quando ele percebe que precisará tomar uma séria decisão...

No quinto conto dois amigos resolvem se casar, para a alegria de seus familiares que sempre desejaram vê-los juntos. A moça sempre foi apaixonada pelo amigo, já ele só a via como irmã. Após o casamento, mesmo passando a vê-la como mulher e de desejá-la, ele tem grandes dificuldades para fazer amor. O problema não é com outras, mas apenas com ela, o que o deixa bastante confuso e frustrado.

No sexto conto, dois detetives investigam o assassinato de uma adolescente que estudava e morava num colégio de freiras. Ela havia sido estrangulada e o assassino levara a medalha que ela carregava presa a uma corrente no pescoço. O detetive Guedes estava disposto a prosseguir com a investigação e ouvir testemunhas e suspeitos de maneira imparcial e profissional, mesmo que a morte de uma menina de doze anos fosse algo que mexesse com qualquer ser humano. Já o seu parceiro, detetive Leitão, um católico fanático, que julgava e condenava a todos conforme sua visão da religião e de Deus, via um suspeito já como culpado baseado em seus preconceitos e seu fanatismo. Não ouvia nenhuma opinião que fosse diferente da sua. E não tinha nenhum problema em abusar de sua autoridade, inclusive agindo com clara violência. Este conto se concentra no fanatismo religioso, na intolerância religiosa e na violência policial, e isso é mostrado de uma forma que nos provoca muita angústia. Ficamos mais do que chocados com a injustiça que é cometida, com toda a crueldade. Eu fiquei muito abalada.

O sétimo e último conto da coletânea traz um casal que se conheceu por acaso durante uma festa de Ano Novo. De início, sequer confessaram seus nomes verdadeiros. Após aquela noite, se encontravam em segredo, cheios de mistérios, amando o gosto de "proibido" daquela relação. Mas depois de alguns meses aquilo deixou de ser excitante e passaram a querer mais. E conforme começam a confessar seus segredos e descobrem que ambos são casados... percebem que precisam fazer alguma coisa para transformar aquele relacionamento em algo duradouro. Queriam ficar juntos, queriam se casar. O fato de já serem casados era realmente um problema...

Nunca imaginei que as histórias do Rubem Fonseca eram tão... intensas. Eu não estava preparada para tudo o que encontrei nestes contos, mas a leitura valeu a pena sim. A escrita dele é envolvente, quando começamos a ler não conseguimos parar, mesmo que as histórias nos provoquem certo incômodo. 



-> DLL 20: Um livro de contos


13 de julho de 2020

Flores para Algernon - Daniel Keyes

Literatura norte-americana
Título Original: Flowers for Algernon
Tradutora: Luisa Geisler
Editora: Aleph
Edição de: 2018
Páginas: 288

36ª leitura de 2020

Sinopse: Uma cirurgia revolucionária promete aumentar o QI do paciente. Charlie Gordon, um homem com deficiência intelectual severa, é selecionado para ser o primeiro humano a passar pelo procedimento. O experimento é um avanço científico sem precedentes, e a inteligência de Charlie aumenta tanto que ultrapassa a dos médicos que o planejaram. Entretanto, Charlie passa a ter novas percepções da realidade e começa a refletir sobre suas relações sociais e até o papel de sua existência. 
Delicado, profundo e comovente, Flores para Algernon é um clássico da literatura norte-americana. A obra venceu o prêmio Nebula e inspirou o filme Os Dois Mundos de Charlie, ganhador do Oscar de Melhor Ator, um musical na Broadwaye homenagens e referências em diversas mídias.




Eu tinha ouvido falar muito sobre este livro, mas de modo algum poderia imaginar que ele me marcaria tanto. Que me destroçaria. Que me faria pensar em tantas coisas...

Não sei como falar de tudo o que sinto, do quanto fui impactada pelo Charlie e a história dele. Como chorei até não ter mais forças. Quando nos colocamos no lugar deste protagonista sentimos sua dor em nossa pele, sentimos como se tudo aquilo estivesse acontecendo em nossa vida. E é simplesmente horrível. 

"[...] inteligência e educação sem doses de afeto humano não valem droga nenhuma."

Charlie Gordon é um homem de 32 anos com uma deficiência intelectual grave, que desde os 15 anos trabalhava como faxineiro na padaria de um amigo de seu tio. Muito esforçado, sonhava em aprender a ler e escrever, algo que nunca tinha conseguido, e por isso buscou se matricular em aulas especiais voltadas para adultos com problemas de aprendizado, que lutavam para aprender o máximo que pudessem. 

Inocente como uma criança, acreditava ter muitos amigos entre seus colegas de trabalho e não percebia o desprezo, a zombaria e os ataques deles, enxergando tudo como uma "brincadeira", incapaz de notar a maldade daqueles que tanto admirava e tinha como sua família. Não conseguia recordar o seu passado. Esquecia logo em seguida muito do que aprendia; em suas próprias palavras "não sabia pensar", não lembrava como tinha chegado naquela padaria na qual trabalhava há dezessete anos e nem quem eram os seus pais, se estavam vivos ou mortos, onde moravam... Nada. Seu passado era como uma página manchada, na qual todas as informações tinham sido cobertas com tinta. 

Por conta de seu esforço em aprender a ler e escrever, mesmo com inúmeras dificuldades, foi escolhido como o primeiro ser humano a ser submetido a uma cirurgia que prometia "tornar a pessoa inteligente". Os cientistas envolvidos no experimento viam que as vantagens, as chances de sucesso eram muito maiores que os riscos e tinham quase total confiança que daria certo. 

"Depois da operasão vou tentar ser esperto. Vou tentar com toda minha força."

Fascinado com a promessa de ser tão esperto quanto as outras pessoas e com isso fazer mais amizades, Charlie aceita ser usado naquela experiência, mesmo que também sentisse medo. A cirurgia acaba sendo um grande sucesso, possibilitando que ele vá muito além de simplesmente aprender a ler e escrever. Sua inteligência supera as expectativas. Quanto mais o tempo passa, mais inteligente, excepcional ele se torna, ao ponto de ser considerado um gênio. Mas... tudo na vida tem um preço. 
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