27 de julho de 2020

Úrsula - Maria Firmina dos Reis

Tempo de leitura:


Literatura Brasileira
Editora: Penguin & Companhia das Letras
Edição de: 2018
Páginas: 224

38ª leitura de 2020

Sinopse: Obra inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula é um dos primeiros romances de autoria feminina escritos no Brasil. Maria Firmina dos Reis, mulher negra nascida no Maranhão, constrói uma narrativa ultrarromântica para falar das mazelas sociais decorrentes da escravidão.

Tancredo e Úrsula são jovens, puros e altruístas. Com a vida marcada por perdas e decepções familiares, eles se apaixonam tão logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho para concretizar seu amor. Combinando esse enredo ultrarromântico com uma abordagem crítica à escravidão, Maria Firmina dos Reis compõe Úrsula, um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina, em 1859. Por dar voz e agência a personagens escravizados, é vista como a obra inaugural da literatura afro-brasileira. Retrata homens autoritários e cruéis, mostrando atos inimagináveis de mando patriarcal e senhorial em um sistema que não lhes impõe limites. Com rica introdução e contextualização histórica, esta edição de Úrsula celebra uma das autoras mais importantes da literatura nacional e conta com estabelecimento de texto e introdução de Maria Helena Pereira Toledo Machado e cronologia de Flávio Gomes. 




Este é um livro do qual eu não sabia o que esperar e que se tornou um dos meus favoritos. Como é que eu ainda não conhecia esta autora???!!! 

Faz horas que terminei a leitura e ainda estou atordoada. Este livro mexeu profundamente comigo. Mergulhei na leitura e em tudo o que acontecia... como se fizesse parte da história, como se estivesse acompanhando tudo de perto. E isso me atingiu em cheio. Porque é um livro doloroso. Que machuca o leitor. 

"Cadeia infame e rigorosa, a que chamam - escravidão?!... E entretanto este também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo." 

A história começa com o encontro inesperado entre Túlio, um jovem escravo que no fundo do seu coração sonha em ver-se livre das crueldades da escravidão, e Tancredo, um homem branco atormentado por traições familiares que desestabilizaram toda sua vida. Tancredo é salvo por Túlio após um acidente na estrada e, profundamente grato por alguém ter se importado tanto com ele como aquele desconhecido, busca conseguir sua liberdade logo após se recuperar. É a partir daí que entre os dois surge uma linda amizade, que os uniria até o fim de suas vidas. 

É para a casa da pobre Luzia B. que Tancredo é levado para se recuperar. Ali, a mulher vivia com sua filha Úrsula e seus dois escravos, Túlio e Susana. Doente, presa à cama há muito tempo e piorando dia após dia, Luiza é tomada pela angústia diante do provável destino de sua filha, que sem ela ficaria completamente só num mundo que nunca tinha sido bom para nenhuma das duas. O alívio vem com a chegada daquele desconhecido, que se apaixona por Úrsula e a pede em casamento. 

"Úrsula, eu vos amo! E se vossa alma simpatizar com a minha, meu coração vos tem escolhido para a companheira dos meus dias."

Tancredo não tinha nenhuma intenção de se apaixonar. Depois de todo o sofrimento que tinha suportado por conta da dupla traição provocada por aqueles a quem tanto amava, não acreditava que voltaria a abrir seu coração para o amor. Só que ao ver aquela jovem tão gentil e bondosa, que cuidava dele com tanta dedicação enquanto ele se recuperava, foi impossível não se apaixonar. Dormia e acordava pensando nela e não poderia simplesmente ir embora e esquecê-la. Precisava dela em sua vida.

O sentimento era recíproco. Úrsula, que até então desconhecia o amor, também se apaixona por Tancredo e sonha com o dia em que se casarão. Com a benção dada por sua mãe nada poderia impedir aquela felicidade. Nada poderia separá-los... exceto a obsessão e a maldade de um parente que tanto mal já tinha causado e retorna disposto a ter a jovem para si... mesmo que ela seja sua sobrinha. 

"Juro, mulher, que hás de ser minha esposa, ou o inferno nos receberá a ambos."

Num período da história do Brasil no qual a escravidão ainda existia, roubando a liberdade e a vida de milhares de pessoas, é que os acontecimentos deste livro se passam. Tendo como pano de fundo o romance entre Tancredo e Úrsula, o livro aborda as crueldades e injustiças da escravidão, bem como o machismo que oprimia e destruía mesmo as mulheres supostamente "livres", numa sociedade patriarcal na qual elas não tinham reais direitos, na qual não tinham voz. 

Quem inicia esta leitura achando que vai encontrar apenas um romance recheado dos elementos tão presentes no Romantismo se engana completamente. Sim, temos o romance melodramático entre o jovem Tancredo e a pobre Úrsula, duas pessoas apaixonadas e condenadas pela crueldade de seus familiares, cujo destino não parece que será feliz. Todavia, o livro vai muito além disso. É como se o romance entre o casal protagonista nem fosse o principal. A autora apenas usa a história deles para falar da escravidão, da violência sofrida pelas mulheres, das injustiças de sua época. 

É um livro que nos dá um golpe atrás do outro. Quando achamos que nada mais nos fará sofrer, lá vem mais um acontecimento doloroso para nos encher de revolta, de ódio, para nos fazer querer entrar na história e acabar com nossas próprias mãos com pessoas que nem são dignas de serem chamadas de seres humanos. Nos perguntamos como alguém consegue ser tão cruel. Como um ser humano é capaz de fazer coisas tão horríveis com seu semelhante! Muitas cenas nesta história me provocaram desespero, me fizeram pensar em todas as vidas que foram marcadas e destruídas pela maldade da escravidão. 

"E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade!" 

Túlio e Susana. Apesar de serem supostamente os personagens secundários, são na verdade os mais importantes de todo o livro. É através deles que a autora aborda a escravidão. Através de suas dores, de seu passado, das marcas físicas e emocionais que carregam. Susana era mãe e esposa em sua terra natal. Tinha família, amigos, toda uma vida de felicidade e liberdade antes que os europeus surgissem em seu caminho, antes que a sequestrassem e trouxessem para o Brasil, lhe roubando tudo o que ela tinha, rindo de suas súplicas, de seu sofrimento. Quando ela conta como foi a travessia, o tratamento desumano que acabou matando muitos dos africanos antes mesmo que a viagem terminasse, é impossível segurar as lágrimas. 

Basta nos colocarmos no lugar dessa mulher, nos imaginarmos perdendo tudo o que temos, todos os nossos entes queridos e sermos levados para sermos escravos de outras pessoas, como se fôssemos objetos, como se fôssemos uma coisa qualquer sem sentimentos. Basta nos imaginarmos passando por tudo isso para sentirmos o desespero, a impotência, a desesperança. O capítulo dedicado à Susana, no qual ela nos conta tudo o que passou durante e após o sequestro, o inferno de "pertencer" a um desgraçado sem coração, é o capítulo mais emocionante e importante de todo o livro. E só ele já valeria toda a leitura. É triste saber que uma preciosidade como este livro foi condenado por tanto tempo ao esquecimento. Que a autora foi quase que "apagada" da nossa história, da nossa literatura. 

"Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão."

A dor da Susana me perseguiu durante toda a leitura. Fiquei imaginando o que aconteceu com a família dela, com seu marido e sua filha. Será que se lembravam dela? Que mesmo depois de todos aqueles anos ainda tinham a esperança de reencontrá-la? É tão horrível pensar em tudo o que ela passou. Ver como ela já não acreditava mais que pudesse ter outra vida, outra chance. Embora ao lado de Luiza e Úrsula ela não sofresse maus-tratos, era impossível apagar da memória tudo o que sofreu nas mãos do irmão de Luiza e depois nas mãos do marido dela. Nunca poderia esquecer nada daquilo. Todas as mortes que assistiu... como os seus semelhantes foram torturados até a morte por aqueles que se julgavam superiores apenas por causa da cor da pele. 

"[...] mas a dor, que tenho no coração, só a morte poderá apagar! - meu marido, minha filha, minha terra... Minha liberdade..."

Túlio também perdera muito para a escravidão. Nascido escravo, teve a mãe arrancada do seu lado ainda muito pequeno, vítima da crueldade do irmão de Luiza, que para se vingar da irmã descontou boa parte do seu ódio em quem ela mais gostava. Susana fez todo o possível para suprir o vazio deixado pela mãe da pobre criança, fez o que pode para que ele não sofresse, para que não conhecesse a verdade do destino daquela que lhe deu à luz. 

Ao encontrar Tancredo e salvar sua vida como salvaria a de qualquer semelhante, jamais imaginou que o outro o trataria com tanto respeito, com tanta consideração, como se fossem... iguais. E era exatamente assim que Tancredo o via: como seu igual, seu irmão. Ele abominava a escravidão e logo trata de conseguir a liberdade de Túlio, de quem se torna grande amigo. Embora gostasse muito de Luiza e Úrsula, Túlio nunca teve uma relação de amizade com alguém, nunca foi tratado daquela maneira e a relação entre Tancredo e ele se torna muito profunda. Eles passam a estar sempre juntos, se protegendo e ajudando mutuamente. Eu achei simplesmente linda e verdadeira a amizade entre os dois. Daquelas raras, sabe? Que quase não vemos mais hoje em dia. 

"A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar!" 

Além de abordar profundamente o tema da escravidão, mostrando claramente como era bárbaro e desumano uma pessoa escravizar outra, como aquilo ia contra todos os ensinamentos de Cristo (a autora fala muito dos ensinamentos de Jesus ao longo da história), ela também nos traz a questão do machismo e da violência contra a mulher. Pense só nisso! Um romance abolicionista publicado em 1859, VÁRIOS ANOS ANTES do fim da escravidão. Escrito por uma mulher. E mulher negra. Um livro que além de ser abolicionista, também fala da violência contra a mulher numa sociedade que de modo algum iria querer que alguém falasse com tanta clareza de temas nos quais ninguém queria tocar, que fingiam que não existiam. 

"É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura."

Para falar da opressão sofrida pelas mulheres supostamente "livres" naquela sociedade patriarcal, a autora contou a história de três personagens: a mãe de Tancredo, a mãe da Úrsula e a própria Úrsula. Através das lembranças do mocinho conhecemos os tormentos que sua mãe vivia nas mãos do marido, que era autoritário e violento, e tratava de fazer dos seus dias um completo inferno. Era alguém que, pelas próprias palavras do Tancredo, sentia prazer em fazer a esposa sofrer. Tudo o que aquela mulher tinha de felicidade em sua vida era a proximidade com o filho que ela tanto amava e é justamente por isso que o pai trata de mandá-lo para longe, para romper o laço que o unia à mãe, para causar mais dor à mulher. 

E aí temos a pobre Luiza. Que foi contra a própria família para se casar por amor, mas acabou presa a um homem que só lhe trouxe desgraças, que torturava os escravos lhe causando imensos sofrimentos, que era extremamente cruel e desumano. E como se não bastasse isso, ainda tinha que suportar o ódio de seu próprio irmão que, revoltado por ela tê-lo contrariado ao se casar com alguém que ele desprezava, trata de atormentar mais seus dias, principalmente depois da morte do marido, quando ela se vê completamente desamparada num mundo hostil. Seu próprio irmão a deixa na miséria e dia após dia lhe provoca mais dor, mais privações, mais sofrimentos. Paralítica e presa numa cama por conta de sua doença, ela não tem sequer um segundo de paz, pois sabe que sem ela, Úrsula ficaria sozinha nas mãos de um parente que só tinha ódio no coração. 

"Frágil, e já sem forças, eu vi Fernando à cabeceira do meu leito como se fosse o anjo do extermínio a falar-me de coisas, que só me poderiam abreviar os instantes."

E Úrsula também se vê vítima do poder e da maldade de um parente. Esse tio (Fernando) que tanto mal já tinha feito contra a própria irmã resolve que está "apaixonado" por ela e que ela irá se casar com ele por bem ou por mal. Porque ninguém jamais vai contra as suas vontades. Ele era seu tutor, seu dono. Ela tinha que fazer o que ele quisesse ou não viveria. 

Através da históra dessas três mulheres, a autora nos faz refletir sobre a situação desesperadora de tantas mulheres naquela época. Que se viam sob o poder de seus maridos, pais ou irmãos, que não tinham voz, que eram caladas e subjugadas. É horrível acompanhar seus destinos... Eu conseguia ver os olhares de dor daquelas mulheres, como aqueles que deveriam protegê-las eram quem mais sofrimento lhes causavam, que destruíam suas vidas. Dói dentro de nós a cena na qual a mãe de Úrsula diz que seu irmão regressou apenas para abreviar ainda mais os seus dias, para terminar o que ele tinha começado anos antes. O pavor que ela sente quando ele aparece... Não consegui parar de pensar em todas as mulheres vítimas de violência por seus próprios familiares. Que eram vítimas no passado. E seguem sendo nos dias atuais, pois em pleno século XXI a violência contra a mulher ainda é um dos nossos maiores males, uma das principais causas de morte de mulheres em nosso país. 

Este é um livro simplesmente precioso. Que todos deveriam ler. É essencial para a nossa literatura, um clássico digno de ser considerado um. O talento da autora é incontestável. Sua narrativa é profundamente envolvente. A história flui naturalmente, nos provocando uma confusão de sentimentos, nos fazendo sofrer com as injustiças e ansiar por um final que nos dê alívio, que conforte nossos corações. 

Por fazer parte do Romantismo, tem todo aquele "exagero" típico dos livros desse período, mas eu confesso que sou uma apaixonada por este tipo de narrativa. Amo o sentimentalismo que transborda, as cenas e diálogos intensos, que nos possibilitam sentir tudo com os personagens. 

Úrsula é uma história que eu recomendo muito! Eu a li numa leitura coletiva promovida pela Kelly do canal Aventuras na Leitura. Ela criou o Clube de Leitura - Clássicos da Literatura Nacional, no qual leremos um livro por mês. O projeto inicialmente irá até dezembro. Para saber como participar basta clicar AQUI. O livro escolhido para agosto é Capitães da Areia, do Jorge Amado. 



-> DLL 20: Um livro de capa laranja



Leitora apaixonada por romances de época, clássicos e thrillers. Mãe da minha eterna princesa Luana e dos meus príncipes Celestino e Felipe (gatinhos filhos do coração). Filha carinhosa. Irmã dedicada. Amiga para todas as horas. Acredita em Deus. E no poder do amor.

8 comentários:

  1. Oi, tudo bem?

    Leio tantos comentários positivos acerca dessa obra e não sei o porquê de eu ainda não ter a lido, afinal, é um clássico! Adorei a sua resenha e fiquei super instigado para ler a obra, preciso!

    Abraços.
    www.acampamentodaleitura.com

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  2. Oii!

    Luma, eu preciso ler um dia esse livro. Que resenha linda e tocante... Eu já conhecia de nome a obra, mas fiquei mais interessada agora e o projeto é beeem bacana, acho que quando não faz parte da nossa rotina, acabamos deixando os classicos de lado. Gostei muito da dica!

    Beijinhos,
    Ani
    www.entrechocolatesemusicas.com.br

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  3. Pode parecer meio estranho, mas eu amo um drama cheio de dores. Ainda não conhecia esse livro e já coloquei na lista de leitura pra sofrer.
    Valeu pela dica!

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  4. Oiiii,

    A hora que eu li o nome do livro eu achei que fosse alguma adaptação de a pequena sereia e que falaria sobre a bruxa do mar kkkkkk Acho que ando vendo coisas da Disney demais kkkkk. Eu já tinha ouvido falar da autora e sou louca para conferir a escrita dela, e o enredo dessa história deixa muitas expetativas mesmo né? Fora sua resenha extremamente empolgada, me deixou super curiosa para poder conferir a leitura.

    Beijinhos...
    http://www.equipenerd.com.br/

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  5. Olá, tudo bem? Interessante saber que a história vai além do que aparenta. E sua resenha traz toda a sua animação a certa do enredo. Não conhecia, mas fiquei super curiosa por tudo que falou. E acho que tem tudo também para ser favorito. Ótima resenha!
    Beijos

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  6. Oi, Luna.
    Gostei bastante da sua resenha e deu para perceber que você gostou mesmo dessa leitura. Que legal! Não é o tipo de livro que estou procurando no momento, mas vou deixar a dica anotada para uma outra hora. Por enquanto ando seu cabeça para livros tão impactantes assim!
    beijos
    Camis - blog Leitora Compulsiva

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  7. Oi Luna, tudo bem? Que resenha mais incrível. Acredito que escrevemos melhor sobre algo quando mergulhamos na obra e sentimos cada sensação transmitida pelo autor. Com relação a escravidão nunca li nenhuma obra que abordasse o tema além dos livros de história na época do colégio. O gênero que mais leio é suspense/policial então é difícil surgir esse assunto. Mas é interessante o autor ter trazido de forma tão forte e real no decorrer do livro. Somente quem já viveu situações parecidas conseguem perceber a intenção do autor ao falar sobre os negros, sobre a escravidão e tudo o que essas pessoas viveram. Consegui perceber o quanto gostou da experiência. Um abraço, Érika =^.^=

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  8. Adoro os clássicos da nossa literatura, embora muitos olhem torto para eles. Me deparei com essa obra pela primeira vez no ensino fundamental, mas confesso que já não lembrava quase que absolutamente nada sobre ela. Gostei de recordá-la, isso só me deu a certeza de que preciso relê-la.

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