"Perto do Coração Selvagem", romance de estreia de Clarice Lispector, assombrou leitores e críticos logo após sua publicação, em 1943. Tendo uma voz narrativa que ora incorpora o mundo interior da protagonista Joana, ora a contempla de fora, o livro alterna dois tempos: a infância, na qual a personagem interroga seres e coisas, e um presente intemporal como a eternidade, em que as vicissitudes de um casamento que jamais representou uma ilusão resumem os outros pequenos desastres que reconduzem a personagem a sua inadequação primordial. Com uma escrita tateante, sonâmbula, Clarice Lispector não recapitula de modo linear as vivências de Joana (como a morte do pai ou a separação do marido, visto desde sempre como um estranho), mas flagra o instante em que cada experiência ou cada encontro eclode com seu enigmático significado, apresentando-se como via de acesso ao "selvagem coração da vida" - conforme a frase de Joyce que, por sugestão do escritor Lúcio Cardoso, Clarice Lispector utilizou na epígrafe e no título desse livro que inaugura uma das obras mais inovadoras da literatura brasileira.
Palavras de uma leitora...
- A sinopse acima é bem completa resumindo de maneira perfeita esta história. Portanto, eu nem preciso escrever nada.rs E, definitivamente, sequer me sinto preparada para começar a falar deste livro tão diferente e... perturbador. Ainda me sinto confusa, um tanto quanto perdida.
Quem nunca ouviu falar da Clarice Lispector na época do colégio? Eu passei por textos dela durante as aulas de Literatura, mas nunca senti um desejo grande de conhecer algum dos seus livros. Essa vontade só surgiu quando decidi apostar mais nos clássicos e de tanto o nome da autora aparecer nos sites de pesquisa resolvi colocá-la na minha lista. E não. Eu não estava enganada: sabia bem que a autora tinha uma escrita que incomodava e confundia os leitores. Que seus livros são densos, do tipo que você precisa ler quando realmente se sentir pronto. Eu não estava preparada e por isso caí de cabeça no chão.kkkkkk...
Sério. Embora eu já tenha lido outras histórias que mexem com nosso psicológico e nos deixam com aquela energia pesada, como se estivéssemos com o peso do mundo sobre os ombros, nada poderia me preparar para a leitura de Perto do Coração Selvagem. E, conforme a sinopse, este foi o trabalho de estreia da autora. Imagine como não devem ser suas outras obras!rsrs
"Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade."
- Este é apenas um trechinho do segundo capítulo do livro. Meu exemplar está todo marcado, pois eu destaquei muitos trechos ao longo da leitura, um mais impactante que outro. Ficava tão chocada com alguns que os relia várias vezes para ver se estava realmente lendo direito ou se minha vista estava me pregando peças.rsrs Me perdia em meus próprios pensamentos, tão transtornada com as ideias da protagonista, com suas experiências de vida e a grande confusão que havia dentro da mente dela. Cheguei a pensar que no final ela acabaria por se suicidar, de tão atormentada que parecia, tão fora de órbita. Não estou dando nenhum spoiler, estou só dizendo o que eu achei que aconteceria. Joana, a protagonista desta história, é uma mulher muito perturbada, do tipo que te provoca compaixão, medo, desprezo, choque e até mesmo uma espécie de empatia. E no final ficamos com a sensação de que corremos vários quilômetros para irmos parar no mesmíssimo lugar de partida.
"[...] como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?"
- A história não segue uma linha do tempo muito certa, bem como não se passa sempre no mundo exterior. Como a sinopse bem ressalta o livro se divide entre os acontecimentos no exterior e interior de Joana. De repente estamos dentro da cabeça dela (desejando desesperadamente sair dali), obrigados a ler o que ela pensa, o labirinto que é aquela mente e só queremos fugir, porque é demais para nossa própria cabeça, uma confusão tão grande que nos esgota física e emocionalmente e aí precisamos interromper a leitura ou não conseguiremos lidar com as responsabilidades do dia, de tão transtornados que ficamos com as coisas que se passam no interior da protagonista. E quando menos imaginamos somos levados para o que está acontecendo do lado de fora, o casamento em crise, fadado ao fracasso desde que ambos disseram "sim", o convívio dela com outros membros da família e aí vamos do passado ao presente e vice-versa sem nenhum aviso, o que nos faz ter que prestar mais atenção na leitura para não nos perdermos.
- Joana é uma personagem que era bem diferente das outras pessoas ainda quando criança. Sempre muito questionadora, não aceitava respostas prontas. Ela sempre buscava mais, queria entender até mesmo o que não possuísse explicação, algo que testava a paciência daqueles que conviviam com ela, embora pelo que podemos perceber seu pai tentasse ter uma relação boa com ela, que não tinha mãe e era criada apenas por ele. Ao mesmo tempo que ela nos parece ter sido uma criança insensível, incapaz de sentir empatia por alguém, também parecia extremamente sensível, necessitada de amor e sem saber como buscá-lo, como provocá-lo nas pessoas. E isso nos angustia e confunde. Há um episódio no livro, pouco antes de ela ser enviada para um internato, no qual o comportamento da menina, que sabia que suas atitudes tinham consequência, mas não se importava com isso, acaba por assustar muito sua tia. Joana tinha perdido o pai e foi enviada para ser criada por essa tia, que era casada e tinha sua própria filha já crescida. Embora a mulher tenha tentado estabelecer uma conexão com a menina passou a se sentir cada vez mais incomodada em sua presença, de tão profundos e e perturbadores que eram os olhares de Joana. Ela despertava medo nos próprios familiares e depois de um episódio em particular a tia decidiu que já não a queria mais em sua casa e decidiu por mandá-la para um internato, para se livrar "daquele problema". Confesso que eu própria senti medo da protagonista.kkkkkkkk... Não dela quando criança, mas da mulher adulta. Da que tinha pensamentos tão... nem sei como explicar.
"Porque ela nascera para o essencial, para viver ou morrer. E o intermediário era-lhe o sofrimento."
- Como eu disse, o livro não segue uma linha do tempo e nem intercala presente e passado de uma maneira marcada. Não. Uma hora estamos no presente e no trecho seguinte poderemos estar no passado de Joana e é realmente necessário estar atento para não se perder. Além de sermos levados à infância da protagonista também acompanhamos um pouco de seu relacionamento com seu marido Otávio, personagem que também nos causa certo incômodo ao longo da leitura. E ainda tem Lídia, a amante de Otávio, que apesar de não aparecer tanto também deixa sua marca na história. Basicamente o livro acaba por se concentrar nesses três personagens, embora eu ache que a segunda personagem principal seja a mente de Joana.rsrs
"Viver sobre si mesmo, sobre seu passado, sobre as pequenas vilezas que cometera covardemente e a que covardemente continuava unido. Otávio pensava que ao lado de Joana poderia continuar a pecar."
O interessante de se comentar sobre o Otávio, além do fato de ele ser vil, é que fica nítido que ele decidiu se casar com Joana, abandonando a mulher de quem estava noivo, porque ela era forte. Porque existia alguma coisa nela que ele sentia que sempre tinha buscado em sua vida. Todavia, logo no início do casamento ele se sente preso, não porque estivesse enganado sobre ela ao se casar, mas porque a mesma personalidade que o atraía e lhe dava o que ele desejava também o sufocava, lhe roubando a vontade de viver. Porque a força de Joana era sombria, ele se sentia controlado por ela e com desejos de escapar. No entanto, também queria permanecer.
"Certamente você estava esperando de mim grandes bondades, apesar do que disse agora sobre minha maldade. Mas a bondade me dá realmente ânsias de vomitar."
- Joana é uma personagem que nos provoca muitos sentimentos contraditórios. Ela é bipolar, sendo levada da alegria incontrolável à tristeza profunda em questão de instantes, com pensamentos tão tumultuados, passando tantos momentos perdida em seu interior, que cheguei a considerar que ela passou boa parte de sua existência vivendo o que se passava em seu interior do que levando uma vida normal do lado de fora. E o que mais me assustava na personagem era a sua maldade latente. Como se a qualquer momento ela pudesse fazer algo terrível, como se a crueldade que ela carregava pudesse explodir de repente. Eu senti muito medo dela. Ela não era normal. E definitivamente não era boa. Joana não sentia piedade de ninguém (talvez um pouco apenas dos animais). Nem amor. Ela queria ser amada, mas existiam momentos nos quais ela também não queria isso.
Não posso, todavia, negar que Joana nos impressiona com sua força e sua introspecção. Boa parte do livro se passa dentro da personagem e apesar de isso nos sufocar (quase literalmente) também nos faz refletir sobre a maneira como ela enxergava as coisas. É perturbador, sem sombra de dúvidas, mas também é fascinante.rs
- Dei 4 estrelas ao livro, por ser uma obra incrível e conseguir nos atingir de maneira tão forte. Pretendo sim continuar lendo as obras da autora, mas da próxima vez escolherei bem o momento.kkkkkk... Porque é aquele tipo de narrativa que nos desgasta. Que nos rouba a energia e por isso é preciso estar preparada.
"De súbito recordou-se: ainda agora pensara-o, talvez antes de encostar o braço no de Otávio, talvez naquele momento em que tivera vontade de gritar... Cada vez mais tudo era passado... E o passado tão misterioso como o futuro."