29 de janeiro de 2019

Vox - Christina Dalcher

(Título Original: Vox
Tradutor: Alves Calado
Editora: Arqueiro
Edição de: 2018)


O governo decreta que as mulheres só podem falar 100 palavras por dia. A Dra. Jean McClellan está em negação. Ela não acredita que isso esteja acontecendo de verdade. 

Esse é só o começo... 

Em pouco tempo, as mulheres também são impedidas de trabalhar e os professores não ensinam mais as meninas a ler e escrever. 
Antes, cada pessoa falava em média 16 mil palavras por dia, mas agora as mulheres só têm 100 palavras para se fazer ouvir. 

...mas não é o fim. 

Lutando por si mesma, sua filha e todas as mulheres silenciadas, Jean vai reivindicar sua voz. 



Palavras de uma leitora...


- Desde o seu lançamento no ano passado Vox se tornou um dos livros mais comentados pelos leitores. Eu ouvia falar desta história o tempo todo e o fato de a mesma ser comparada com O Conto da Aia foi o que realmente me motivou a lê-la. Quem acompanha o blog sabe que a distopia criada pela autora Margaret Atwood se tornou uma das minhas leituras preferidas, embora também seja uma das mais angustiantes. 

Por este motivo que mesmo ansiosa para começar a leitura eu não a iniciei logo. Esperei que uma amiga pudesse ler o livro comigo, pois ler um livro como este não é fácil. Provoca muito desgaste emocional e vontade de desabafar com alguém, de saber que outra pessoa está sentindo a mesma revolta, a mesma impotência e desejo de acabar com a raça de certos personagens. Vox me perturbou muito, sobretudo porque nada o que ocorre neste livro é impossível de acontecer. Muito pelo contrário! E é isto que assusta. Perceber que nossas escolhas erradas, nossa falsa sensação de segurança, de que temos direitos garantidos que nada nem ninguém pode abalar, pode acabar com tudo. Pode colocar loucos no poder. Fanáticos religiosos que com sua lábia conseguem alienar boa parte da população e fazê-la considerar todas as escolhas tomadas pelo governo como certas, em benefício do país. Foi o que se passou em Vox. Um alerta para todo o mundo, como se a História mundial já não fosse aviso o suficiente. Mas como tendemos a ter memória curta (e seletiva) atrocidades do passado tendem a se repetir. 

"- Vocês não fazem ideia, senhoritas. Absolutamente nenhuma ideia Estamos a um passo de voltar à pré-história, meninas. Pensem nisso. Pensem onde vocês vão estar, onde suas filhas vão estar, quando os tribunais atrasarem os relógios. Pensem em expressões como 'permissão do cônjuge' e 'consentimento paterno'. Pensem em acordar um dia e descobrir que não têm voz em nada."

- Jean McClellan era mãe de quatro filhos e  se tornara uma importante neurolinguista em seu país. Casada há muitos anos com Patrick, um cientista que fazia parte do conselho do Governo, nunca ligou muito para os movimentos feministas, um dos motivos que a afastaram de sua melhor amiga Jackie, quem participava ativamente de tais movimentos. Ainda na época da faculdade elas se desentenderam, pois Jackie era incapaz de entender como Jean podia viver numa bolha, sem encarar a realidade da fragilidade de direitos que as mulheres possuíam e a necessidade de se lutar sempre, para que os direitos já adquiridos fossem mantidos e outros fossem conquistados. Jean achava tudo aquilo uma baboseira e puro histerismo e as duas acabaram por cortar todas as relações. 

Mas era nela que Jean mais pensava quando via tudo o que considerava como certo... escapar. Ser destruído sem que pudesse fazer nada. Por que não pensou antes? Por que se manteve inerte? Agora não podia voltar no tempo. Era tarde demais. 

"Nunca mais falei com Jackie. Em noites como esta, gostaria de ter falado. Talvez as coisas - a coisa da eleição, a coisa da nomeação, a coisa da confirmação, a coisa da ordem executiva - não tivessem chegado a este ponto."

- Tudo começou a dar errado antes mesmo de Sam Myers ganhar as eleições para presidente. Um movimento que até então não parecia tão forte, guiado por um fanático chamado de Carl Corbin, que acreditava que era necessário limpar o país de correntes e ideologias nocivas, para o bem da Família e a retomada dos ensinamentos bíblicos como bases de uma nação, tomou força de repente. Jean e muitas outras mulheres não conseguiram prever isso, embora as feministas estivessem atentas muitos anos antes sobre a possibilidade de isso vir a acontecer. Como o Cinturão da Bíblia não era forte em seu estado, Jean não prestou muita atenção nele. Afinal de contas, quem daria ouvidos à tanta besteira? Vivia em pleno século XXI e todo o alarde em torno de determinadas crenças dominarem o país não passava disso. Mas estava enganada. E pagava um preço alto demais por seu erro. 

"E não pense que serão todos homens. As Recatadas do Lar vão estar do lado deles."

Quando Sam Myers assumiu o poder tudo já estava perfeitamente organizado. Tendo o reverendo Carl Corbin como o verdadeiro cérebro por trás de todas as mudanças, começou a pôr em prática tudo o que tinha sido arquitetado, contando com o apoio de boa parte da população, que seguia os ensinamentos de Carl como se ele fosse um deus e acreditava fielmente no Movimento Puro. 

"Aprendi que, assim que um plano é estabelecido, tudo pode acontecer da noite para o dia."

- No início, quando as coisas começaram a se mostrar muito ruins, algumas pessoas ainda conseguiram fugir, buscar exílio, refúgio em outros países. Mas logo o novo Governo tomou as providências necessárias para garantir o controle total sobre a população. Os passaportes de todas as mulheres foram cancelados e suas contas passaram a ser administradas por seus respectivos responsáveis (maridos, pais, parentes próximos). Mulheres foram arbitrariamente proibidas de trabalhar, tendo suas funções passadas para homens escolhidos pelos representantes do governo. Elas deveriam contentar-se em cuidar da casa, do marido e dos filhos, pois era assim que Deus desejava que as coisas fossem, segundo as crenças daquele líder religioso. E, definitivamente, deveriam permanecer em silêncio, pois era uma vergonha uma mulher atrever-se a contestar seu marido em público ou interferir de qualquer forma em suas decisões. E como simplesmente mandá-las se calar não bastava... por que não colocar em prática outros dos planos já anteriormente estabelecidos?

"[...] Cada página berrava um fundamentalismo de extrema direita."

- O silêncio foi obtido de maneira bastante eficaz. Os homens do governo, fortemente armados, buscavam as mulheres, crianças e bebês (do sexo feminino), onde quer que elas estivessem. As instruções foram brevemente dadas, as deixando cientes de que saberiam maiores detalhes através de seus responsáveis, e então uma pulseira aparentemente inofensiva e regulada para identificar a voz da pessoa que a tivesse em seu braço, foi colocada em todas as pessoas do sexo feminino, ainda que fossem crianças de poucos anos ou bebês. Tal pulseira concedia apenas o direito de dizer 100 palavras ao longo das 24 horas do dia. Algo que Jean considerou patético e uma brincadeira de mau gosto. De modo algum aquilo poderia ser real, mas ela descobriu de maneira bastante dolorosa o quanto aquilo era sério. E o que acontecia quando as 100 palavras eram ultrapassadas. 

Em choque, diante de todas as mudanças que estavam sendo implementadas, e sabendo que já não era possível parar tudo aquilo, ela assistiu impotente as notícias sobre o que estava acontecendo com aquelas tidas como as minorias. Feministas de todo o país estavam sendo perseguidas e silenciadas pelas forças armadas, condenadas a campos de concentração, onde sequer teriam direito ao total de 100 palavras. Homossexuais que constituíram famílias tinham seus filhos arrancados de seus braços, entregues para o parente "puro" mais próximo. Enquanto eles também eram condenados a campos de concentração, tendo como "quarto" de dormir uma cela que seria dividida com alguém do sexo oposto, no intuito de "curá-los" de seus desvios. As pessoas que cometiam adultério também eram jogadas nos mesmos campos, condenadas ao silêncio e ao trabalho forçado perpétuo, até que suas forças se esvaíssem e morressem. 

As meninas já não podiam mais frequentar as mesmas escolas que os meninos. Proibidas de ler e escrever, aprendiam somente o necessário para em breve serem perfeitas esposas e mães, sendo o casamento precoce (logo na adolescência) incentivado. Os pais deveriam casar cedo as suas filhas, com homens que eles julgassem apropriados, não importando o que as meninas ou suas mães tivessem a dizer sobre o assunto. E as mesmas deveriam engravidar rapidamente, para perpetuar a espécie humana. 

"Acho que, se algum dia as coisas voltarem ao normal, eles vão usar aquele velho clichê: Eu só estava cumprindo ordens
Onde foi que já ouvimos isso?"

Como aceitar a nova realidade? Como entender que já não podia se comunicar direito com o próprio marido ou educar seus filhos? Todos os seus livros tinham sido trancados, longe de seu alcance. Seu computador e outros objetos de trabalho também lhe foram tirados. Qualquer folha de papel era proibida. As correspondências eram entregues somente ao Patrick. E existiam câmeras por toda a parte na rua e na entrada e nos fundos de sua casa, para impedir que as mulheres se comunicassem mesmo pela linguagem de sinais. E aquelas que fossem pegas infringindo as novas leis não teriam sequer direito a um julgamento.

 O medo dominava muitas das mulheres e tinha o efeito eficaz de paralisar e impedir qualquer forma de manifestação, de revolta. Mas Jean estava por um fio. Sua filha nunca aprenderia a ler e escrever. Seus filhos já tinham se acostumado a não ouvir mais o som da sua voz e se comunicarem apenas com o pai. Jean estava começando a perceber que já não conseguia olhar para o marido com os mesmos olhos, que mesmo sabendo que ele não era responsável por tudo aquilo e que abominava todas as mudanças ela estava começando a odiá-lo. Mas pior que tudo isso era perceber que seu filho mais velho, com apenas dezessete anos, se transformara num inimigo dentro de sua própria casa. Um perigo para ela e para Sonia. Era preciso fazer alguma coisa. 

"Tento me convencer de que não é minha culpa. Eu não votei no Myers. 
Na verdade, eu não fui votar."

- A oportunidade surge quando o irmão do presidente sofre um terrível acidente, que provoca uma lesão neurológica que o impossibilita de comunicar-se com as outras pessoas. Conhecida como afasia de Wernicke, esta lesão não rouba das pessoas as palavras orais ou a escrita, mas tira delas a compreensão. Assim, todas as palavras que saíssem da boca delas, por mais fluentes e elegantes que fossem, seriam carentes de sentido. Da mesma forma, elas não conseguiriam compreender o que outras pessoas lhes perguntassem. Com esta afasia a compreensão se perde por completo

Jean era uma cientista muito talentosa e estava trabalhando num soro anti-Wernicke quando sua pesquisa foi interrompida pelo governo. Todo o processo já estava bastante adiantado e se aquele malditos doentes não a tivessem silenciado e impedido de trabalhar já teria a tão sonhada cura para aquela séria lesão, devolvendo a tantas pessoas a capacidade de comunicação que tinham perdido, fosse por um traumatismo craniano ou um derrame cerebral. 

Todavia, com o acidente sofrido pelo irmão do presidente, o governo percebe que necessita de Jean mais do que nunca. Porque somente ela poderia terminar aquele soro... Ainda atordoada pelos acontecimentos repentinos, Jean percebe que aquela era a sua chance.... de recuperar a sua voz e descobrir o que eles de fato pretendiam. 

Qual o real motivo para quererem tanto o soro anti-Wernicke? E até que ponto Jean seria necessária? As respostas podem ser mais aterrorizantes do que ela poderia imaginar... e a inteligência era tudo o que ela possuía para jogar contra um governo que seria capaz de qualquer coisa por poder. 

"Às vezes eu refletia sobre isso, sobre como crianças podem se transformar em monstros, como aprendem que matar é certo e a opressão é justa, como em uma única geração o mundo pode mudar tanto até ficar irreconhecível."

- Este livro me fez refletir sobre muitas coisas e me deixou bastante angustiada. Diversas vezes tive que interromper a leitura e equilibrar com um livro mais leve, um romance de época, para conseguir manter o controle emocional. Para não me deixar sufocar pelo mundo criado pela autora e tão possível de se tornar uma realidade se a sociedade continuar não prestando atenção em quem vota e por quê. Se continuar se deixando levar pelo que governantes e políticos bastante inteligentes querem que as pessoas acreditem. As pessoas estão acreditando nas coisas mais absurdas possíveis e um dia já não terão capacidade de pensar criticamente e se voltar contra sistemas opressivos e injustos. 

Jean era uma incrédula e uma inocente. Ela dava como certo tudo o que possuía. Outras mulheres já tinham lutado antes dela e tinham adquirido muitos direitos. Para que continuar lutando? Qual o sentido? Era baboseira. Ela tinha muito o que fazer para se preocupar com as besteiras ditas por sua amiga. Não viu o país se dividir. Não viu o fanatismo se espalhar e ganhar imensa força. Não viu nada acontecer, concentrada demais em si mesma. Ela nem sequer foi votar. E quando acordou, quando percebeu o rumo que o país estava tomando já era tarde demais. Sua voz já não seria ouvida. Qualquer manifestação seria sufocada. Com a divisão provocada na sociedade, eles conquistaram. O dividir para conquistar foi utilizado de forma muito eficaz. E mesmo lendo um livro como este as pessoas seguirão cegas, o que é mais triste. :( E o preço é sempre pago por todos, sobretudo pelos mais vulneráveis. 

"- Eu te amo, mamãe. Eu te amo muito. 
Bastam oito palavras para fazer meu coração palpitar."

- O livro possui cenas muito difíceis, que machucam algo dentro de nós. A gente só quer que aquela injustiça acabe e que o fanático que continuava alienando a população queimasse no inferno por todas as atrocidades cometidas, toda a destruição que estava provocando. Uma coisa muito dura é ver o próprio filho da Jean, Steve, se transformar. Com as novas matérias introduzidas na escola ele começa a receber a mesma lavagem cerebral que outros rapazes de sua idade e não demora para considerar tudo aquilo certo, alimentando uma insensibilidade dentro de si. É triste demais ver a Jean recordando o menino pequeno que ele foi, a criança que confiava nela, que ela pegava no colo e consolava. E então ela era obrigada a ver no que seu filho, ainda um adolescente, tinha se transformado. Isso é difícil demais. 

"Quero lutar e não sei como."

- Com este livro também percebemos a importância das palavras. De não permitir que sua voz seja calada. De lutar sempre, da forma que conseguir. Em épocas de ditaduras, muitas pessoas, por mais oprimidas que sejam pelos governos ditatoriais, não se calam. Mesmo utilizando de metáforas e outras técnicas capazes de não tornar tão explícito o que querem dizer, escritores, músicos e artistas em geral utilizavam o que tinham para transmitir uma mensagem de resistência e esperança. O que nos remete a um trecho importante do livro no qual um personagem relembra que "o mal triunfa quando homens bons não fazem nada." Uma grande verdade, não é mesmo? O pior não é uma pessoa má cometer as piores atrocidades, destruindo outros seres humanos sem compaixão. Não. O pior é quando pessoas boas não fazem absolutamente nada, se limitando a assistir ou virar o rosto para o outro lado. Como a música "Embora Doa" mesmo diz "há sempre outro canal", "embora doa nada fiz para mudar". 

"- Há uma resistência?
O mundo parece doce quando digo isso. 
- Querida, sempre há uma resistência."

- O livro é muito bom e recomendo para todos! Leiam! Simplesmente leiam! Aproveitem a oportunidade que têm de ler. Aproveitem os presentes que livros significam para nossas vidas. O mundo precisa de mais leitores. De mais livros. De mais pensamento crítico. Seja o que for no que você acredite, se lembre sempre de antes de tudo ser um ser humano. E defender os direitos humanos. Ainda que determinada violação não te atinja pense sempre que quando atinge um semelhante está te atingindo também. E nenhuma crueldade deve ser tolerada. Seja contra pessoas ou animais. 

A única crítica negativa que tenho a fazer sobre o livro é em relação ao final. Depois de ter conduzido de maneira brilhante o livro inteiro achei que a autora se apressou muito na reta final. Ficou tudo corrido e algumas coisas não foram explicadas. Existem resenhas por aí dizendo que o livro é o primeiro de uma série. Então, talvez essas respostas sejam obtidas nos próximos volumes, se for realmente uma série. 

28 de janeiro de 2019

Revelações - Linda Howard

(Título Original: Kill and Tell
Tradutora: Carolina Caires Coelho
Editora: Bertrand Brasil
Edição de: 2008)

Série John Medina - Livro 1

Alguns segredos precisam ser revelados, doam a quem doer... 

Ainda abalada com a morte recente da mãe, Karen Whitlaw é surpreendida ao receber pelo correio uma caixa contendo um caderno misterioso, enviado por seu pai, com quem mantinha pouco contato desde que ele retornara da Guerra do Vietnã, décadas atrás. Logo depois, uma notícia a deixa chocada: o assassinato de seu pai nas ruas de Nova Orleans.

Mesmo que essas revelações levem a um terrível assassinato. 

Para o detetive Marc Chastain, o assassinato de um morador de rua não fazia sentido - principalmente depois de ter conhecido a filha da vítima. Longe de ser a mulher fria que ele esperava encontrar, Karen Whitlaw mostrava-se simpática e sensível. Ela também está correndo grande perigo. Uma série de "acidentes" mexeu profundamente com Karen, atraindo para ela a proteção do charmoso detetive, a quem, inicialmente, tentou resistir. Juntos, eles desvendam uma história perturbadora que envolve política, poder e morte - e enfrentam um assassino que não vai parar enquanto não tiver em suas mãos os segredos do pai de Karen.



Palavras de uma leitora...


- Eu comecei a ler este livro em 01/10/2018. O que significa que deveria ter concluído a leitura faz tempo, pero... abandonei tudo ao chegar na metade do livro. Simplesmente percebi que não importava o quanto eu insistisse a leitura não tomaria um rumo diferente. A história realmente estava sendo mal conduzida e não havia chance de a autora conseguir salvá-la a partir dali. Por isso, deixei o livro de lado e fui ler outras coisas. 

Foi graças à categoria de janeiro do Desafio 12 Meses Literários que criei coragem para voltar para o tédio que era o livro e terminá-lo. E li a metade que restava em apenas um dia. Por que o livro passou a fluir naturalmente? Claro que não. Simplesmente porque quase me agredi (risos) para concluir a leitura. Tive sérias discussões comigo mesma para poder me forçar a acabar de uma vez com este martírio. 

O pior é que conheço as obras da Linda Howard há anos. E, regra geral, são ótimas apostas, tanto no gênero de romance água com açúcar quanto em suspenses românticos. Me apaixonei pelo livro Reencontros, que conta a história de uma mãe que teve o filho sequestrado ainda bebê e luta não só para recuperá-lo, mas para entender o que motivou o crime, já que não parecia um mero acaso: foi tudo planejado. Sem sombra de dúvidas é um livro que carrego com carinho em minhas lembranças, que me fez chorar muito e em momento algum me causou tédio. Portanto, Revelações foi uma grande e péssima surpresa. 

- O livro já começa mostrando que não vai dar certo. Um mistério mal escrito já na primeira página, pois acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos de forma autômata, sem emoções. E conforme avançamos na leitura percebemos que aquilo não iria melhorar, que não conseguiríamos nos conectar à história e aos personagens. Não importando o quanto tentássemos

A sinopse é bem completa ao mostrar que a história gira em torno de Karen Whitlaw, jovem enfermeira que ainda lidava com a morte repentina da mãe quando recebeu a notícia de que o pai que ela não via há muitos anos havia sido assassinado. Em choque, ela viaja até a cidade do crime para fazer o reconhecimento e planejar o enterro, sequer imaginando que tal assassinato poderia ter algo a ver com uma caixa que o pai enviara para a mãe dela pouco tempo antes. É quando ela conhece o detetive Marc Chastain, o responsável pelas investigações do ocorrido e quem se torna um porto seguro para ela ao longo dos próximos três dias. 

Se sentindo sozinha e perdida, Karen acaba se deixando levar pela química que surge entre ela e o detetive, por mais inapropriado que aquilo fosse. Todavia, após as coisas atingirem um ponto sem volta, ela foge, voltando para sua vida de antes, disposta a esquecer tudo o que tinha acontecido. Mas tudo toma um novo rumo quando duas tentativas de assassinato seguidas a fazem perceber que realmente estava em perigo, que fosse qual fosse o motivo alguém desejava vê-la morta. 

Não podendo confiar em outra pessoa além de Marc, ela se une a ele na tentativa de encontrar respostas e manter ambos vivos. 

- É uma história que tinha até potencial para ser boa e isso sempre me irrita num livro. Quando ele poderia ser bom, mas o autor faz um monte de besteiras. A Linda não conseguiu fazer o mesmo que em Reencontros: não conseguiu equilibrar romance e suspense. Na tentativa de produzir cenas eletrizantes de perseguição e mortes "abortou" diversas cenas. Ela não parecia saber quando parar ou quando continuar, saía abortando tudo e tornando uma cena pior que a outra. Eu chegava a fechar os olhos e respirar fundo, pois em nada esta narrativa se parecia com os outros livros que li da autora. Não sei o que se passou. O livro inteiro foi desenvolvido de forma péssima, tornando a leitura extremamente maçante. 

E, consequentemente, o romance entre o casal não "colou". Não foi convincente. Tudo aconteceu rápido demais. Num momento ela estava no enterro do pai, depois estava na cama com ele, depois estava fugindo, depois estava voltando e percebendo que o amava e o sentimento era recíproco. Tudo em menos de uma semana. Não tive tempo nem de perceber a química quanto mais o amor! E se tem um casal que não combinava era este. E não estou falando de aspectos físicos não. Estou falando de envolvimento. Não "batia", sabe? O que a autora escrevia não batia com o que deveríamos sentir pelo casal ou o que eles próprios deveriam sentir um pelo outro. Acho que nem eles acreditavam que se amavam.kkkkkkk... 

- O suspense não se manteve. A autora segurou o grande segredo até o final, mas era algo muito previsível. Além disso, nem as cenas de perseguição provocaram alguma emoção, pois como eu disse tais cenas eram interrompidas bruscamente. E nem tiveram tantas cenas assim. A autora não harmonizou as coisas, assim não conseguiu construir o típico suspense romântico. Ora ela se concentrava no suspense e esquecia o casal, ora se concentrava no casal e esquecia que era para ter um suspense ali, com perguntas que precisavam ser respondidas e um assassino supostamente no encalço deles. Não tem uma só cena que salve esta história, nem mesmo a cena final. Enfim... 

- É isto. Infelizmente, esta não foi uma boa leitura. Mas, como eu disse, a Linda Howard é uma ótima autora, eu conheço outros livros dela e amo! Não desisti de suas histórias. Simplesmente, como acontece com qualquer autora amada, existe livro que não funciona comigo. O que não significa que será uma leitura ruim para você também. Pode acontecer de você ler e amar! E torço para que isso aconteça! :) 


21 de janeiro de 2019

Contos e crônicas lidos - Janeiro/2019




Olá, queridos!

Não. Eu não tinha intenção de fazer resenha de cada conto lido este ano. Apenas pretendia cumprir minha meta de ler, pelo menos, doze contos e/ou crônicas em 2019, já que ano passado se li três foi muito. Todavia, eu fiquei tão impressionada com alguns que decidi criar um post mensal para falar dos contos/crônicas que tive a oportunidade de ler. 

- Comecemos pelo primeiro conto que li em janeiro. As honras foram do meu querido Machado de Assis com A Chinela Turca. Em 2017 eu fazia resenhas individuais dos contos presentes neste livrinho azul que vocês veem na imagem acima. É possível encontrar cada uma delas clicando aqui. Eu apreciei muito a experiência de falar sobre contos, mas depois parei de lê-los e assim as resenhas individuais chegaram ao fim. :( Mas voltemos ao presente conto.rs

Em A Chinela Turca temos um jovem numa noite normal da vida de um moço abastado, cuja maior preocupação é encontrar sua amada num baile. Só que no momento em que ele estava se preparando para sair um amigo de seu pai o visitou, meio que o intimando a ler seu manuscrito, vez que o indivíduo resolvera se tornar escritor de drama. Claro que ele poderia ter dito não, que estava de saída, mas o outro com sua lábia o convenceu a se atrasar para o compromisso. Você pensa que nada de mais vai acontecer. Que é apenas um conto do cotidiano. Só que as coisas dão tal reviravolta que no final ficamos de queixo caído. Pelo menos, eu fiquei.kkkkkkk.. Simplesmente chocada e encantada pela forma como o autor desenvolveu o conto para segurar a surpresa que seria o final. Foi um dos melhores contos que já li do meu amado Machado. 

- Depois eu migrei para o Monteiro Lobato e resolvi arriscar a leitura de Bugio Moqueado, mesmo sabendo que quase todo conto do autor termina de forma lastimável, ao ponto de nos deixar deprimidos, sabe? É só desgraça. Eu nunca tive a experiência de ler uma obra dele que não terminasse de uma forma a me deixar refletindo sobre as atrocidades e injustiças da vida. Todavia, acho que nenhum foi tão assustador quanto este. Fiquei com os braços arrepiados e verdadeiro pavor. E o pior foi que li à noite, o que é quase certo resultar em pesadelo. 

Não vou entregar nenhum segredo da história. Só digo que o personagem é um "ouvinte". Ele está participando de um jogo, então acaba por se distrair ouvindo uma conversa entre uns senhores que estavam próximos dele. Curioso para saber como a história da qual o homem estava recordando terminaria, ele se deixou levar e mal prestava atenção no jogo. Envolvido, nem percebeu o rumo que a história tomava e foi pego de surpresa como aconteceu comigo, quando o final chegou e foi digno de um filme de terror. 

Importante mencionar que o conto além de caminhar para o terror também aborda violência doméstica e racismo e pode ser uma leitura forte. 

"Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite."

É um conto que impressiona e assusta. Não leria novamente. É muito bem escrito, envolvente, você não consegue abandonar, mas é uma história que agrada quem aprecia contos de terror. E como muitas das obras do autor, este conto pode ser polêmico. Mas antes de xingá-lo é necessário fazer uma segunda leitura (se a primeira não for suficiente) para compreender a crítica social, inclusive uma crítica ao racismo. Eu sei que provavelmente muita gente sabe que algumas obras do autor foram denunciadas como de conteúdo racista. Todavia, os contos Negrinha e Bugio Moqueado criticam abertamente a forma como eram vistas e tratadas as pessoas negras, as crueldades as quais eram submetidas até mesmo as crianças. São contos importantíssimos, embora este segundo tenha me deixado aterrorizada. Contos que mostram a cara de uma sociedade preconceituosa, de "cidadãos de bem" capazes das piores crueldades contra aqueles que eles não veem como seres humanos. Contos escritos tantos anos atrás (no século passado), mas ainda muito atuais em sua essência. 

- O terceiro conto que li foi A Princesa da Língua Bifurcada, presente no livro Contos Peculiares, do autor Ransom Riggs que ficou conhecido ao escrever a série O Lar da Srta. Peregrine Para Crianças Peculiares. Nunca tive coragem de ler a série, pois as capas e fotos me assustavam.rsrs Achei que uma maneira leve de conhecer as obras do autor seria através deste livro de contos e foi realmente uma escolha acertada. Porque amei este primeiro conto que li e ficou aquele "gostinho de quero mais", sabe? 

Ele conta a história de uma princesa peculiar, que possuía uma língua bifurcada e escama nas costas. Ela vivia de forma muito solitária e praticamente não falava com ninguém, exceto sua criada, que era a única a conhecer sua condição estranha. Ela morria de medo do que os outros poderiam pensar. Então, seu pai resolve prometê-la em casamento a um príncipe que ela jamais tinha visto, para poder unir os dois reinos e livrá-los de uma iminente guerra. Impressionado com a beleza que o rosto da jovem possuía, o príncipe apenas ficou incomodado com o fato da sua futura esposa não responder verbalmente suas perguntas, apenas balançava a cabeça. Não querendo começar o casamento com mentiras, a princesa resolveu conversar em particular com o noivo e revelar seu segredo, já que o mesmo afirmara que nada o faria mudar de ideia sobre o casamento. Pois bem. Ela contou e a reação dele foi a pior possível. A partir daqui não digo mais nada, pois é interessante se surpreender com os acontecimentos subsequentes. É uma história que nos faz refletir sobre o tratamento que muitas pessoas recebem de sua família, amigos e desconhecidos apenas por serem diferentes, por não se encaixarem em determinados padrões. Acho que o final pode desagradar algumas pessoas, mas eu gostei. Tinha que terminar assim. 

- Dias depois eu resolvi apostar nos contos infantis dos Irmãos Grimm. Li A Princesa e o Sapo ou Henrique de Ferro, que provou ser muito diferente da versão que eu conhecia da Disney. Confesso que detestei o conto, a forma como a tal princesinha era mimada e seu egoísmo me irritaram. Sem mencionar que o próprio sapo não era muito melhor que ela. No fundo, até se mereciam. E também não consegui compreender se a princesinha era uma jovem ou uma criança e por isso o final me deixou um tanto perturbada. 

Já o conto Rumpelstiltskin é bem parecido com a versão que eu conhecia, embora com algumas pequenas alterações. Por ter acompanhado durante anos a série Once Upon a Time acabei por me interessar por esse conto e procurei mais informações sobre ele. É uma história envolvente, mas com final macabro. A história gira em torno da filha de um moleiro que, para impressionar o rei (ou sei lá se tinha outros motivos) decidiu inventar que a garota possuía o poder de transformar palha em ouro. Então, o rei a tranca e ameaça sua vida, caso ela não consiga cumprir o que seu pai prometeu. A jovem, obviamente, entra em desespero, pois nunca tinha transformado palha em ouro em toda sua vida. É quando o duende Rumpelstiltskin aparece e em troca de um objeto que ela possuísse decide fazer o serviço no lugar dela. E a partir daí o conto segue. 


Depois de ter me encantado com os contos acima resolvi apostar nas crônicas de um autor do qual eu apenas ouvia falar: Caio Fernando Abreu. E, meu Deus do céu!, onde eu estava para ainda não ter lido nada dele?! 

Comecei pela crônica Pequenas e grandes esperanças. Nela o autor fala de como nós costumamos considerar os anos que se passaram como melhores que o que estamos vivendo no momento. "Nossa, os anos 70 eram tão maravilhosos!" ou "Nenhum ano foi tão perfeito quanto o ano tal" e existe realmente muita verdade nisso. Costumamos olhar para o passado com nostalgia, mas muitas vezes enquanto vivíamos determinado ano não o valorizávamos ou não o considerávamos o mar de rosas que pensamos quando ele se tornou algo concreto, pertencente ao passado. Sempre valorizamos aquilo que já se foi. Do mesmo jeito que fazemos quando perdemos um ente querido, não é mesmo? 

Li também a crônica Pequenas epifanias, na qual o personagem fala do presente que ganhou de Deus - ou o que consideramos Deus - uma possibilidade de amor. E o que tal sentimento lhe provocou, como tudo aquilo era bom, o simples sentir algo, mesmo que não se pretendesse levar nada adiante. 

Então estes foram os cinco contos e as duas crônicas que li em janeiro. Mas, Luna, o mês ainda não acabou!rs Isto é certo. Todavia, sei que não lerei mais nenhum conto ou crônica este mês, pois tenho que correr para concluir algumas outras leituras. :)

17 de janeiro de 2019

O Menino do Pijama Listrado - John Boyne

(Título Original: The boy in the striped pyjamas: a fable
Tradutor: Augusto Pacheco Calil
Editora: Companhia das Letras
Edição de: 2013)

É muito difícil descrever a história de O menino do pijama listrado. Normalmente, o texto de orelha traz alguma dica sobre o livro, alguma informação, mas nesse caso acreditamos que isso poderia prejudicar sua leitura, e talvez seja melhor realizá-la sem que você saiba nada sobre a trama. 

Caso você comece a lê-lo, embarcará em uma jornada ao lado de um garoto de nove anos chamado Bruno (embora este livro não seja recomendado a garotos de nove anos). E cedo ou tarde chegará com Bruno a uma cerca. 

Cercas como essa existem no mundo todo. Esperamos que você nunca se depare com uma delas. 



Palavras de uma leitora...


- Hoje aqui não há alegria. Esta é uma resenha triste sobre um livro que partiu meu coração. Talvez você já conheça a história. Eu a conheci anos atrás quando assisti a adaptação para o Cinema. Lembro do quanto chorei na época, mas mesmo assim quando soube que existia o livro quis lê-lo. Ainda que soubesse com antecedência que ficaria destroçada. Mas eu queria conhecer o Bruno e o Shmuel... de um modo que o filme não conseguiria mostrar. 

Esta é uma história de amizade. De amor. Mas também de guerra e ódio. Há um pequeno menino de nove anos chamado Bruno que não entende por que as coisas estão tão diferentes. Há uma cerca e um campo de concentração, onde meninos de sua idade usam sempre pijamas e parecem muito tristes. Entre esses meninos está Shmuel. Aquele que se tornaria o seu melhor amigo. 

- Bruno não entendia por que tinha que abandonar sua casa e seus amigos e mudar-se com a família para outro lugar. Não aceitava a decisão de seu pai e tudo o que sabia é que aquilo era culpa do tal Fúria, o homem desagradável que certa noite jantara em sua casa e provocara uma discussão entre os seus pais. Mas o Fúria transformou seu pai em comandante, o que quer que aquilo significasse, e todos precisavam se mudar por conta da nova "missão" que ele recebeu. Mesmo batendo o pé e deixando claro o quanto estava furioso com os acontecimentos, Bruno era apenas um menino de nove anos, cujos sentimentos não eram levados em conta diante de algo tão importante. 

O consolo de Bruno era que a mãe também não parecia muito feliz e isso talvez os fizesse voltar para casa num futuro previsível, como ela costumava dizer, embora ele não soubesse o que seria um futuro previsível. Talvez significasse três semanas. Ou menos. Era sua esperança. 

"Porém, havia algo a respeito da casa nova que fazia Bruno pensar que ninguém jamais ria por lá; que não havia motivo para riso e nada com que se alegrar."

Tudo era muito diferente na casa nova. Além de ela não ser tão grande quanto sua verdadeira casa, existiam soldados por toda parte, entrando e saindo como se fossem donos do lugar. Bruno não gostava deles, mas aquele que lhe provocava verdadeiro pavor era o tenente Kotler, um rapaz de dezenove anos que não hesitava em agir de maneira cruel com o servente que ia toda tarde até a casa de Bruno para cuidar dos legumes. O senhor Parvel. Aquele que era médico antes, mas agora não era mais, embora Bruno também não compreendesse isso. 

Seus dias naquele lugar eram muito solitários, pois só contava com a companhia da irmã, que era um Caso Perdido, e gostava de aproveitar o fato de ser alguns anos mais velha para poder infernizá-lo. Daí o fato de ser um caso perdido. Mas existia uma coisa que despertava a curiosidade de Bruno: a cerca e que o tinha além dela. O lugar que ele conseguia ver da janela de seu quarto. Por que todas aquelas pessoas usavam pijamas? E com tantas crianças naquele lugar ele não deveria estar tão sozinho. Todavia, no fundo de seu coração sentia que não deveria falar com os pais para convidá-los, que existia alguma coisa errada, embora ele não soubesse o quê. 

"Ah, aquelas pessoas", disse o pai, acenando com a cabeça e sorrindo levemente. "Aquelas pessoas... Bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno."

Quando finalmente criou coragem para mencionar o que tinha visto, Bruno recebeu uma resposta muito estranha do pai. Porque quando olhava para aqueles seres humanos da janela de seu quarto eles certamente lhe pareciam pessoas. Um tanto diferentes dele, é verdade, pois estavam sempre com pijamas e pareciam muito pálidos e magros, mas ainda assim eram pessoas. E quando explorando o lugar escondido de seus pais ele conheceu Shmuel teve ainda mais certeza de que, independentemente do que o pai dissesse, não havia muita diferença entre ele e o outro menino. 

Assim uma amizade improvável foi se construindo. Bruno ia toda tarde até a parte da cerca que parecia menos fixa para sentar-se diante de Shmuel e conversar. Eles não podiam brincar. Bruno não podia atravessar para o outro lado, bem como Shmuel não podia vir para o lado dele. No entanto, ele nunca se sentiu tão próximo de outro ser humano, nem mesmo quando tinha seus outros amigos na casa antiga. Com aquele menino que tinha sua idade e nascera no mesmo dia, mês e ano que ele, uma coincidência fascinante, ele sentia que poderia falar de qualquer coisa. Porém, seu coração se entristecia quando olhava para Shmuel e via como ele era tão magro e parecia sempre faminto. E seus olhos... neles existia uma tristeza tão grande como Bruno jamais vira em outra pessoa. Ele não entendia nada. E tinha medo de entender. Mas se tinha uma coisa que sabia é que seria amigo dele até o fim. Seriam amigos para sempre. 

"Ele olhou para baixo e fez algo bastante incomum para a sua personalidade: tomou a pequena mão de Shmuel e apertou-a com força entre as suas. 
'Você é o meu melhor amigo, Shmuel', disse ele. 'Meu melhor amigo para a vida toda'. [...]"

- Posso dizer com toda sinceridade que não tenho muita força para fazer esta resenha. Este livro me deixou mal. E tudo o que chorei com o filme não se compara ao pranto que este livro provocou. Quando estava chegando às páginas finais tive uma crise tão forte que assustei minha mãe e minha irmã, que não entendiam por que eu estava daquele jeito. Minha mãe sentou do meu lado enquanto eu chorava tanto que nem conseguia falar. E quando a crise diminuiu e pude explicar disse: "Eu não suporto mais este mundo, mãe. Não suporto mais tanta crueldade." E realmente não suporto, gente. Estou cansada de ver tantas infâncias perdidas, tantas crianças passando por coisas que nenhum ser humano deveria passar. Estou cansada das notícias de estupros, assassinatos, desaparecimentos. Estou cansada de uma humanidade que só sabe fazer o mal ao próximo. Quando isso vai acabar? Acho que nunca. Porque se tem uma coisa que o ser humano aprendeu ao longo dos séculos foi a ser cada vez pior. 

"Mas, Luna, é apenas um livro." Acredito que todos aqui sabem que não. A Segunda Guerra Mundial existiu. Hitler existiu. O nazismo existiu, embora há quem diga que não e ainda há quem sabe que existiu e defende esse tipo de monstruosidade. O nazismo provocou a morte de milhões de pessoas. Não só com o Holocausto dos judeus, mas também com todos os vitimados pela guerra e outros grupos que eram perseguidos e eliminados: comunistas, deficientes físicos e/ou mentais, opositores do governo, religiosos, ciganos, homossexuais. E crianças não foram poupadas. Eu lembro que assisti uma resenha certa vez, de uma booktuber que tem um canal mais voltado para livros sobre História e crimes reais, na qual ela falou sobre o livro de uma mulher que viveu num campo de concentração. E o que me marcou nesta resenha foi que essa mulher tinha filhos e ela viu que as crianças mais novas, até determinada idade e os idosos eram enviados para uma parte diferente. Acreditando que aqueles grupos mais frágeis provavelmente estavam indo para um lugar melhor, que seriam poupados do trabalho forçado, ela mentiu sobre a idade de seus filhos, na esperança de salvá-los. Somente depois ela descobriu que aquele grupo separado (de crianças pequenas e idosos) foi o primeiro a ser executado. Porque as pessoas que faziam parte dele de nada serviam, por serem novos ou velhos demais. Foi nesse momento que parei de assistir a resenha. Não suportei continuar. 

"E os caminhões nos levaram a um trem, e o trem.." Ele hesitou por um instante e mordeu o lábio. Bruno pensou que ele ia começar a chorar e não entendeu por quê. 
"O trem era horrível", disse Shmuel. "Havia muitos de nós nos vagões, para começar. E não havia ar para respirar."

- Apesar de narrado em terceira pessoa o livro é contado de maneira simples, mostrando a visão de Bruno sobre os acontecimentos, da forma que uma criança tão nova enxergaria as coisas. E isso torna o livro mais difícil. Porque a gente consegue perceber o que Bruno não conseguia. Ele era muito inteligente e bondoso, nunca se esquecendo da educação que sua mãe lhe deu. E quando via algo que lhe parecia errado, como quando o tenente Kotler agrediu o servente Parvel (um dos judeus que estavam no campo de concentração, mas que era conduzido até a casa para descascar um monte de legumes todos os dias) ele não suportava. Enquanto seu pai, a mãe e a irmã viraram o rosto, desconfortáveis, Bruno caiu em prantos, pois aquilo estava muito errado e alguém precisava fazer alguma coisa. Não se devia bater num empregado. Aquilo não estava certo. E uma das coisas que atormentava a cabeça de Bruno sobre o Parvel era o fato de ele ter sido médico e ter deixado de ser. Nada daquilo fazia sentido para ele. Era tudo uma grande confusão. 

Quando a amizade entre Bruno e Shmuel começa nosso coração se aperta ainda mais, pois até mesmo quem desconhecesse por completo a história do livro saberia que tudo poderia terminar mal, pelo simples fato do livro se passar durante a 2ª Guerra Mundial e tratar da amizade entre o filho de um comandante, responsável por um campo de concentração, e um judeu preso neste campo. A gente até poderia não saber como as coisas terminariam, mas diversas seriam as teorias que se passariam por nossa mente. Eu não vou dizer se o livro realmente termina mal ou se as coisas tomam um rumo inesperado e têm um final feliz. Deixo que vocês descubram lendo. 

"Estamos corrigindo a história aqui."

- Como eu disse, o livro mostra a visão de Bruno sobre os acontecimentos, mesmo assim conseguimos perceber muita coisa através do que ele via ou escutava, embora ele próprio não entendesse. O trecho acima, por exemplo, mostra no que o pai dele e muitos outros personagens acreditavam. Bruno tinha um professor obcecado por História, mas uma História parcial, claro. E quando o menino confessou ao pai que odiava estudar história, seu pai lhe explicou a importância de tal matéria e que era justamente por conta disso que estavam onde estavam, corrigindo a história. Tais ensinamentos são transmitidos para a Gretel, irmã de Bruno, que tinha doze anos e compreendia melhor as coisas, embora não tudo. Foi Gretel que explicou ao menino que as pessoas do outro lado da cerca eram judeus e que, portanto, Bruno não poderia se misturar com gente daquela "laia". 

"Estou perguntando: já que não somos judeus, o que nós somos então?"
"Somos o contrário"

"[...] 'Então, por que não gostamos deles?', perguntou ele.
'Porque são judeus', disse Gretel.
'Entendi. E o contrário e os judeus não se dão bem.'
'Não, Bruno', disse Gretel [...]"

- Mesmo após descobrir pela irmã o que tanto o diferenciava dos seres humanos do outro lado da cerca, que segundo o pai não eram pessoas, Bruno não se importou. Sua amizade com Shmuel continuou, sendo o seu segredo, já que ele teve ainda mais certeza de que não poderia contar a ninguém. Quando olhava para o amigo e para si mesmo ele não enxergava um judeu e um contrário. Enxergava outro menino como ele. Alguém com quem ele se importava muito e com quem pretendia brincar quando tudo aquilo terminasse e todos pudessem voltar para suas verdadeiras casas. Por que o que quer que estivesse acontecendo um dia terminaria, certo? E tudo voltaria ao normal. 

A amizade entre os dois é muito bonita de acompanhar, mas também é triste demais. Várias coisas acontecem... sobre as quais nem comentarei. É doloroso ver a inocência das duas crianças que não entendiam o que havia de tão errado com o mundo, só sabiam que algo estava errado e que só podiam ser amigos se aquilo fosse um segredo. Bruno não sabia porque o amigo estava sempre com fome e tão magro, com a pele acinzentada, mas sempre levava um pouco de comida para ele quando se encontravam. Uma das cenas que me fez cair em prantos foi quando o Shmuel disse que já não sentia mais nada. O menino estava com o rosto todo machucado e Bruno acreditando que ele provavelmente tinha caído de uma bicicleta ou algum menino mais velho implicara com ele, perguntou:

"[...] Está doendo?
'Nem sinto mais', disse Shmuel.
'Parece que dói.'
'Já não sinto mais nada', disse Shmuel."

- Este "já não sinto mais nada" foi muito difícil para mim, pois resumiu numa só frase a situação desesperadora em que aquela criança estava, cada vez mais magra e debilitada, passando fome e fazendo trabalhos duros, sendo espancada pelos soldados (pois o livro diz isso nas entrelinhas) e encontrando um alento apenas nos momentos em que sentava de frente para o amigo para que conversassem. Shmuel era tão inteligente quanto Bruno, e ele parecia saber mais sobre a sua situação do que o outro garoto. E uma coisa bonita e muito triste era quando ele tentava poupar Bruno de certas verdades. Ele sabia que o amigo era muito bom e não merecia saber algumas coisas sobre o próprio pai, por exemplo. Então Shmuel o poupava, preferindo ficar em silêncio. A amizade entre os dois foi muito simples e verdadeira. E encerro esta resenha aqui porque sei que vou voltar a chorar. 

14 de janeiro de 2019

Uma Noite como Esta - Julia Quinn


Anne Wynter pode não ser quem diz que é...

Mas está se saindo muito bem como governanta de três jovenzinhas bem-nascidas. Seu trabalho é bastante desafiador: em uma única semana ela precisa se esconder em um depósito de instrumentos musicais, interpretar uma rainha má em uma peça que pode ser uma tragédia ou, talvez, uma comédia - ninguém sabe ao certo - e cuidar dos ferimentos do irresistível conde de Winstead. Após anos se esquivando de avanços masculinos indesejados, ele é o primeiro homem que a deixa verdadeiramente tentada, e está cada vez mais difícil para ela lembrar que uma governanta não tem o direito de flertar com um nobre. 

Daniel Smythe-Smith pode estar em perigo...

Mas isso não impede o jovem conde de se apaixonar. Quando ele vê uma misteriosa mulher no concerto anual na casa de sua família, promete fazer de tudo para conhecê-la melhor, mesmo que isso signifique passar os dias na companhia de uma menina de 10 anos que pensa que é um unicórnio. 

O problema é que Daniel tem um inimigo que prometeu matá-lo. Mesmo assim, no momento em que vê Anne ser ameaçada, ele não mede esforços para salvá-la e garantir seu final feliz com ela. 



Palavras de uma leitora...


- Eu estou tão encantada com esta história... tão perdidamente apaixonada por tudo no livro que nem sei se conseguirei controlar minhas emoções para escrever uma resenha, no mínimo, coerente.rs Estou muito feliz por ter feito uma aposta tão perfeita

Era para estar lendo Vox e O Menino do Pijama Listrado, duas leituras fortes que resolvi enfrentar este mês. E realmente estava lendo ambos os livros, sendo que o segundo já estou quase terminando. Todavia, são leituras que me deixam tão angustiada e à beira das lágrimas o tempo todo que decidi aliviar um pouco as coisas intercalando com um romance de época. A cada capítulo lido dos livros citados eu leria dois capítulos de Uma Noite como Esta.kkkkkk... Acontece que nada saiu como o planejado e no momento em que iniciei a leitura deste livro foi impossível largá-lo.rsrs

"[...] Daniel a fitou do outro lado da mesa e não foi sua beleza que viu. Foi seu coração. Sua alma. E teve a profunda sensação de que sua vida nunca mais seria a mesma."

Era muito bom estar de volta ao seu lar. Por conta de um desafio proposto numa noite de bebedeira e estupidez, Daniel quase assassinara um homem (pior ainda, um amigo), mesmo que tudo não tivesse passado de um acidente. Todavia, era fato que se não estivesse participando de um duelo nada daquilo teria acontecido. Embora Hugh assumisse sua parcela de culpa e não quisesse a cabeça de Daniel como vingança, o mesmo não se poderia dizer de seu pai, que jurara que o mataria, não importava o quanto ele fugisse e se escondesse. Porque o tiro que quase tirou a vida de Hugh o deixou com a perna seriamente lesionada e com dores que provavelmente o acompanhariam pelo resto da vida. Sem outra alternativa para se livrar dos homens contratados pelo pai de seu amigo para matá-lo, Daniel foi embora do país. E viveu por três longos anos fugindo, nunca podendo permanecer por muito tempo em um lugar, pois a sede de vingança daquele homem não tinha fim. Até que, inesperadamente, o amigo foi ao seu encontro, e jurou que ele poderia regressar. Que seu pai desistira da vingança. Poderia ser uma armadilha, é claro, mas Daniel desejava tanto rever sua família, até mesmo suas barulhentas primas, que não parou para pensar em nada. 

Regressou justamente na noite de apresentação do quarteto Smythe-Smith, formado por quatro de suas primas solteiras, mas casadouras, condenadas a se apresentarem (ainda que sem talento) até que se casassem ou morressem, o que viesse primeiro. Mas algo definitivamente estava errado, pois ele tinha certeza que a jovem sentada ao piano não possuía laços de sangue com ele. E graças a Deus por isso, pois no momento em que olhou para ela soube que estava perdido. 

"[...] Esse beijo... Eu o desejo com um fervor que abala a minha alma. Não tenho ideia de por que o desejo, mas foi o que senti no instante em que a vi ao piano, e isso só aumentou desde então."

Ele sabia que seus mundos eram diferentes. Que não deveria ir atrás dela. Que o correto seria deixá-la em paz. Ainda que ela talvez pertencesse a uma boa família era governanta na casa de sua tia, enquanto ele era um conde, destinado a fazer um bom casamento. Mas que importância tudo aquilo poderia ter diante dos sentimentos que o invadiam quando a olhava, quando escutava o seu riso, quando sentia a sua respiração? A queria mais que tudo. Não importava o destino, o futuro, nem o que se escondia no passado dela... que Anne lutava com tanto afinco para manter oculto. Fosse o que fosse... eles poderiam superar. Ou não?

"Mas ele a conhecia. Não conhecia o passado dela, nem seus segredos, mas a conhecia."

- Eu optei por não revelar nada sobre o passado da Anne, pois me pareceu que seria spoiler, já que a autora demora um certo tempo para soltar todas as informações. Então, era para fazer suspense e não posso estragar isso.rs Mas posso dizer que esta leitura não foi tão leve quanto eu imaginava que seria, já que o que se esconde no passado da nossa querida mocinha é algo capaz de nos provocar revolta e vontade de matar certas personagens. Só que como temos um mocinho tão apaixonante e disposto a tudo pela mulher amada acabamos por perceber que o passado não importava mais, por mais doloroso que tenha sido, e que o destino, de uma forma ou de outra, a tinha empurrado na direção dele. Do meu amado Daniel. 

"Mas ela balançou a cabeça quase violentamente e um estranho choro engasgado escapou de sua garganta. 
E quase partiu o coração de Daniel ao meio."

- Daniel e Anne me conquistaram desde o início, com seu humor tão natural, com os olhares que trocavam, por mais que ela fizesse um enorme esforço para recordar todos os motivos pelos quais não poderia se envolver com ele. A ternura e a cumplicidade que havia entre os dois, os momentos em que brincavam com as crianças das quais a Anne cuidava (e eram primas dele), como se eles próprios voltassem a ser crianças nesses momentos... os beijos tão apaixonantes e que pareciam dizer mais do que as palavras conseguiriam. A forma como ele nunca se sentiu superior ou quis se aproveitar da condição dela. Como a protegia e provocava... Como a amava antes mesmo de descobrir que o que sentia era amor. Tudo foi gradual e ao mesmo tempo intenso. Não amá-los era impossível. Os dois roubaram o meu coração. 

"Era aquilo que significava o amor? Sofrer mais pela dor de outra pessoa do que pela nossa?"

- A participação de personagens secundários também foi importante na história, principalmente do Hugh e das crianças. O Hugh me encantou com sua personalidade um tanto reservada e louca (sim, as duas coisas) e fiquei torcendo para que ele tivesse sua própria história na série, por isso saí correndo para olhar a estante e ver se o personagem aparecia como mocinho no livro três. Dito e certo! :D Ele é o protagonista de A Soma de Todos os Beijos e estou mais do ansiosa para mergulhar em sua história. Ele será o par romântico da Sarah, prima do Daniel, e até sinto um pouco de pena dele.kkkkk... É que acho a Sarah um tanto fria e penso que o Hugh terá muitos problemas com ela.rs Será que ele sobreviverá?!rs

Já entre as crianças eu preciso destacar as participações de Harriet e Frances. A primeira é uma menina que decidiu que seria dramaturga e escreve histórias hilárias.rsrs Foram muitos momentos de riso com as histórias dela.rs Já a pequena Frances conquistou por completo o meu coração com seu amor pela Anne. E ela vai ser essencial neste livro. Sem ela as coisas seriam muito mais complicadas. A autora bem que poderia escrever a sua história. :)

"Ela estava com a respiração ofegante, obviamente assustada, mas ainda assim, quando os olhares dos dois se encontraram...
Eu amo você.
Foi como se ela tivesse dito as palavras em voz alta."

- Este livro é perfeito para os apaixonados por uma bela história de amor. No momento que começamos a lê-lo é impossível parar. Esquecemos de comer, de dormir, de fazer qualquer outra coisa que não seja mergulhar por completo na história. O teto poderia desabar sobre nossas cabeças que nem perceberíamos.rsrs Recomendo MUITO! Não irão se arrepender. 


Quarteto Smythe-Smith

2- Uma Noite como Esta
3- A Soma de todos os Beijos
4- Os Mistérios de Sir Richard



Esta foi minha escolha para a categoria ler um romance de época de um autor best-seller, do Desafio Romance de Época, criado pela blogueira do Livros Encantos

11 de janeiro de 2019

A Obscena Senhora D - Hilda Hilst


Logo nas primeiras linhas de A obscena senhora D o leitor é aspirado pela voracidade do texto. No entanto, o que ocorre aqui é diferente daquele impulso comum em livros de suspense, que nem o sono consegue deter.

O mistério na obra de Hilda Hilst (1930-2004) não acontece na trama, mas na forma como sua escrita nos lança num abismo, arrasta como uma vertigem. Se o princípio sugere um monólogo, a multiplicação de vozes e de registros que vêm em seguida impede a certeza na unidade de alguém que narra.

A letra D no título é outra manifestação desse mistério, uma indeterminação que sugere experiências de desamparo, desaparecimento, desabrigo ou até mesmo Deus.

O fluxo quase irracional das frases, as anomalias gramaticais, o modo áspero com que a autora funde o sagrado e o profano podem dar a impressão de um livro difícil, daqueles que a maioria desiste antes do fim. Ao contrário destes, porém, A obscena senhora D é difícil de fechar. Quando acaba, dá vontade de recomeçar para sentir tudo de novo. 
Cássio Starling Carlos Crítico da Folha




Palavras de uma leitora...



- Se vocês pudessem ver minha cara agora... Evidentemente fui muito pretensiosa ao imaginar que tinha maturidade literária o suficiente para encarar Hilda Hilst. O resultado? Quebrei a minha cara.rs

Ano passado me desafiei a ler Clarice Lispector, apostando em sua obra Perto do Coração Selvagem. E por mais difícil e tumultuosa que tenha sido a leitura eu sobrevivi. E até comprei outro livro dela para ler futuramente. Sofri muito lendo Clarice pela primeira vez, pois a história era pesada, do tipo que te empurra para baixo, de deixa com uma sensação de sufocamento. E são tantos pensamentos da protagonista, tanta confusão e dor e maldade, que é impossível não nos sentirmos mal ao fim da leitura. Mas, como eu disse, sobrevivi. E acreditei que poderia enfrentar uma obra da Hilda Hilst. 

Na minha inocência imaginei que a Clarice era a autora mais difícil entre as duas. Ambas tem em comum a utilização do recurso do fluxo de consciência em suas histórias, o que faz com que algumas de suas obras (não sei se todas) sejam mais introspectivas, se passando mais dentro da mente dos personagens, porém mesclando-se com momentos do cotidiano e confundindo por completo quem está lendo.rs São livros distintos e complexos. A Obscena Senhora D, por exemplo, na minha edição possui 52 páginas, mas eu senti como se tivesse mais de 500, só para vocês terem uma noção. Na verdade, um livro de quinhentas páginas seria menos desgastante de ler.rs 

"[...] queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo."

- No início do livro acreditamos que estamos prestes a ler uma história que será contada pela própria protagonista, uma senhora de sessenta anos, recentemente viúva, que se chama Hillé, mas que também era conhecida como Senhora D, nome que seu marido lhe deu. Não como um nome carinhoso, pelo que entendi, mas porque a protagonista vivia fazendo inúmeras perguntas para as quais não existiam respostas, numa eterna busca por algo, por um sentido que jamais encontraria. Era Senhora D, D de Derrelição, de Desamparo, nas próprias palavras dele. De uma mente inquieta e em derrocada. 

Percebemos desde as primeiras páginas que Hillé não é uma pessoa mentalmente sã. Pelo menos, não para o que conhecemos como sanidade mental. Vai muito além de uma busca por respostas, por querer compreender certos porquês. Ela é muito parecida com a Joana de Perto do Coração Selvagem, só que muito mais intensa e perturbada, muito mais sozinha, abandonada... perdida. Sobretudo após perder o marido Ehud, cinco anos mais velho que ela, e o único que parecia conseguir se não contê-la, pelo menos impedi-la de ultrapassar o limite entre a lucidez e a loucura. Ele era o fio que a prendia à realidade. Sem ele? Tudo ruiu de vez. 

"não estou bem, Ehud
ninguém está bem, estamos todos morrendo"

- O trecho acima é escrito exatamente assim no livro. Quem conhece a obra sabe que o livro inteiro não obedece às normas da língua portuguesa. Não está nem aí para regra nenhuma. Há até uma nota no início explicando que por conta da licença poética utilizada pela autora o texto seria mantido exatamente como a Hilda desejou, vez que foi escrito assim de propósito. Talvez para dificultar ainda mais a vida de nós leitores.kkkkkk... Voltando ao trecho... Enquanto está pensando em inúmeras outras coisas há um momento em que a Hillé faz uma pausa e penetra a lembrança quando ela disse não estar bem e seu marido respondeu que ninguém está bem, pois todos estamos morrendo. E como eu sei que é o Ehud quem responde? Como? Por mera suposição.rsrs Só lendo vocês compreenderão que é muito fácil nos perdermos ao longo da leitura. Eu tive que voltar páginas muitas vezes, pois não se especifica quem fala o que e quando. Nada é linear, nada é marcado, nada é definido, sabe? Conforme nos acostumamos com o mundo louco do livro até conseguimos identificar com mais facilidade quando ela está lembrando, pensando e quando é outra fala que surge, outro personagem, outro momento. Mas é complicado. E muito!


"Por que me chamo Hillé e estou na Terra? E aprendi o nome das coisas, das gentes, deve haver muita coisa sem nome, milhares de coisas sem nome, e nem porisso elas deixam de ser o que são, eu se não fosse Hillé seria quem? Alguém olhando e sentindo o mundo
Alguém, nome de ninguém"

Eu demorei um certo tempo para compreender que o desequilíbrio emocional da protagonista vinha desde a infância provavelmente (igual a Joana de Perto do Coração Selvagem) e que ela conheceu o marido ainda quando menina. Que a sua busca por respostas foi se transformando em obsessão e que conforme os anos foram se passando e ela foi chegando à velhice as coisas foram piorando, tornando a linha que a separava da loucura cada vez mais tênue. A morte do marido foi a gota que fez o copo transbordar, que a lançou direto ao abismo, mas antes mesmo de ele falecer ela já estava muito mal. Tinha se mudado definitivamente para um vão debaixo das escadas. Morava ali, estava todo o tempo naquele lugar. 

"Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? você está me ouvindo Hillé? olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não está aí, ouviu? nem no vão da escada, nem no primeiro degrau aqui de cima, será que você não entende que não há resposta?"

Com a morte dele, ela perdeu uma efetiva conexão com a realidade. Mergulhou por completo em seus pensamentos, em suas buscas, não cuidava dos peixes, pois isso era algo que ele fazia, então os peixes também morreram e ela os substituiu por peixes de papel e os carregou para debaixo das escadas, os mantendo dentro do aquário onde ficavam os peixes de verdade. Tinha surtos em que gritava com os vizinhos, xingava, tirava a roupa inteira e assustava quem passava pela janela. Os vizinhos passaram a vê-la como uma louca e enquanto uns sentiam piedade, em outros isso despertava a maldade e a zombaria. O desejo de fazer mal. 

"loucura é o nome da tua busca. esfacelamento. cisão.
derrelição."

- Embora o livro aparentemente se passe todo durante o tempo (dias, meses?) em que ela vive no vão das escadas e tenha como principal personagem a mente da Senhora D, há outras vozes, outros personagens que também se manifestam na história. Temos a voz do Ehud, que nos é apresentado pelas lembranças dela... sendo que em alguns momentos não sabemos se ela está lembrando ou imaginando. Temos ainda as vozes de alguns vizinhos, a do pai dela (em suas lembranças) e outros. 

Um momento que achei muito interessante foi quando, em sua confusão de pensamentos, ela recordou o conselho que seu marido deu antes de falecer, o pedido para que ela não ficasse sozinha, que buscasse um outro alguém, que se afastasse de sua vertigem. Ele sabia, na minha opinião, que ela não conseguiria sobreviver por muito tempo. Que ela se perderia por completo se não tivesse alguém para mantê-la conectada com a vida. 

"quando eu não estiver mais evita o silêncio, a sombra, procura o gesto, a carícia, um outro, e que ele conheça o teu corpo como eu conheci, ensina-o se for inábil e tímido, busca tua salvação, empurra o espírito para uma longa viagem, afasta o espírito"

Quem é muito sensível a certos palavreados (risos) não deve de modo algum apostar nesta leitura. Palavrões rolam soltos. E a personagem fala das partes íntimas do corpo sem qualquer pudor. Sabe aquelas palavras mais vulgares? Pois bem. Vai encontrar neste livro. E as descrições de momentos de intimidade também. Com crueza. Explicitamente. Não posso nem citar um trecho como exemplo porque meu blog é aberto para todo público de leitores. Não vou definir uma faixa etária para leitores do livro porque este não é meu papel, mas certamente eu não recomendaria para menores de dezoito anos. Mas isto sou eu que estou dizendo. Porque não acho que uma obra que tem uma carga erótica tão grande seja recomendada para menores de idade. Porque não é um romance daqueles de banca que lemos e tem cenas de sexo, cenas de amor bonitinhas. Aqui é cru. É disso que estou falando: as cenas são muito cruas.

"[...] porque todas as perdas estão aqui na Terra, e o Outro está a salvo, nas lonjuras, en el cielo, a salvo de todas as perdas e tiranias, e como é essa coisa de nos deixar a nós dentro da miséria? que amor é esse que empurra a cabeça do outro na privada e deixa a salvo pela eternidade sua própria cabeça?"

- De todos os trechos que me impressionaram este é o meu preferido. O que me fez pensar bastante aqui. No meio das buscas da Hillé e de sua confusão de pensamentos também existia uma busca por Deus, por ouvi-lo, por senti-lo, por estar com Ele. Por sentir que Ele se importava com ela. Só que tais momentos não são separados de outras lembranças da personagem, é tudo muito junto e há uma mistura, como a sinopse mesmo diz, de "sagrado com profano". E se o leitor for do tipo que não sabe separar obra literária de sua religião vai acabar por se sentir ofendido, indignado, querendo condenar a autora por fazer semelhante coisa. É necessário separar as coisas, gente. Ter um pouco de maturidade. Eu, por exemplo, sou católica, mas isso nunca atinge minhas leituras. Leio de tudo. Inclusive vou ler Saramago este ano.kkkkkkk... 

"lembra-te que perguntaste como ficava a alma na loucura? quando te fores, responde-me de lá."

- Se alguém aqui já leu este livro me diga se não se sentiu tão perturbado quanto a personagem durante a leitura e se conseguiu concluí-la sem se sentir literalmente mal. Eu fiquei com o corpo pesado, como se existisse algo sobre os meus ombros. É um livro muito desgastante. E, no fim, chegamos à conclusão de que não entendemos coisa alguma.rs Bem... eu até entendi, mas quem garante que não entendi tudo errado?!kkkkkk

Quem estuda profundamente a literatura, os gêneros literários e tudo mais certamente aprecia bastante os livros em que há a utilização do recurso do fluxo de consciência e devem estudar atentamente, com bastante dedicação, autores como Clarice, Hilda Hilst, Virginia Woolf, James Joyce... Os dois últimos eu também terei que ler este ano por conta dos desafios dos quais resolvi participar (sim, sou louca), mas será uma leitura normal e não um estudo dos livros. Portanto, acho que não enlouqueço mais do que o necessário. Agora aqueles que estudam essas obras... Esses merecem todo o meu respeito! São sobreviventes. Verdadeiros guerreiros. Porque não são livros fáceis não. De modo algum. 

"E nunca nos compreendemos como existências, atados os dois como cão e cadela, mas teu sonho era o meu, teu sangue, tua vida a minha"

- Dei 4 estrelas ao livro. Imagino sim que ele possivelmente seja digno de mais, só que sou uma leitora normal, na média, e sem a maturidade literária necessária para uma obra como esta. Sou humilde o suficiente para reconhecer isso. Não tenho a bagagem literária para um livro como este e nem recomendo a história para qualquer pessoa, mas somente para quem se sente preparado ou quer apostar num gênero diferente, quer arriscar uma leitura mais densa e desgastante. É uma experiência única sim, vale a pena, mas é diferente. Vai chocar, vai perturbar e confundir. Mas é bem possível que você compreenda o livro muito melhor do que eu consegui. Porque confesso: cheguei ao fim acreditando que entendi nada.rs 

Quando voltarei a ler Hilda Hilst? Daqui a uns cinco, dez anos, talvez?!rsrs A Clarice eu devo voltar a ler agora em 2019, mas a Hilda eu vou aguardar mais um bom tempo. Porque, como eu disse, não estou preparada para as obras dela. Não estou mesmo. 

- Bem... Com este livro eu concluí o primeiro mês de três desafios: Literatura Nacional, Clássicos e Mulheres em Foco. Saiba mais sobre eles clicando aqui

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