3 de novembro de 2020

Frankenstein - Mary Shelley

Tempo de leitura:



Literatura Inglesa
Título Original: Frankenstein, or, The Modern Prometheus
Tradutor: Christian Schwartz
Editora: Penguin & Companhia das Letras
Edição de: 2015
Páginas: 424

62ª leitura de 2020 (56ª resenha do ano)

Sinopse: O arrepiante romance gótico de Mary Shelley foi concebido quando a autora tinha apenas dezoito anos. A história, que se tornaria a mais célebre ficção de horror, continua sendo uma incursão devastadora pelos limites da invenção humana. Obcecado pela criação da vida, Victor Frankenstein saqueia cemitérios em busca de materiais para construir um novo ser. Mas, quando ganha vida, a estranha criatura é rejeitada por Frankenstein e lança-se com afinco à destruição de seu criador. Este volume inclui todas as revisões feitas por Mary Shelley, uma introdução da autora e textos críticos de Percy B. Shelley e Ruy Castro. Há ainda um apêndice com textos de Lorde Byron e do dr. John Polidori.



Observe-se que esta leitura consta como a 62ª do ano, mas a de E Não Sobrou Nenhum consta como 63ª. Isso ocorre porque Frankenstein foi minha última leitura de outubro E Não Sobrou Nenhum foi a primeira de novembro.rs Eu só inverti a ordem das resenhas. 

Na resenha do livro da Agatha Christie (resenha aqui) eu comentei que recentemente tinha lido dois livros nos quais existiam personagens brincando de Deus. No da referida autora era um psicopata que tinha decidido julgar e condenar pessoas por seus pecados, aplicando a pena que ele considerava adequada. Só que se você pensar bem, a crueldade do assassino e seus jogos eram tão doentios, que não era bem "brincar de Deus", mas sim brincar de diabo.

Já em Frankenstein as coisas são bem diferentes. Não se trata de ninguém querendo "fazer justiça" com as próprias mãos, mas sim de um cientista que se considera o máximo, o "escolhido" para descobrir os mistérios da vida e decide que vai criar outro ser humano.... no laboratório. Que vai descobrir o que "dá vida", qual é essa essência que faz um ser humano surgir do nada e "respirar", como Adão, lá no livro de Gênese, na Bíblia Sagrada. Não estou mencionando religião porque sou cristã, mas sim porque o próprio livro vai fazer tais comparações, principalmente quando conhecemos o ponto de vista da Criatura feita por Victor Frankenstein. 

"[...] seguindo as pegadas já deixadas, serei o pioneiro de um novo método, explorarei forças desconhecidas e revelarei ao mundo os mais profundos mistérios da criação."

Só que na Bíblia, Deus criou Adão do pó da terra e "soprou o fôlego da vida em suas narinas, e o homem se tornou ser vivo." (Gênese 2, versículo 7). O Dr. Victor Frankenstein não pretendia criar nenhum novo ser humano do pó da terra, mas sim de restos de cadáveres que ele pegava em cemitérios, por mais horror que sua própria atitude lhe provocasse. Ele queria satisfazer seu desejo pessoal, seu ego, ao conseguir dar vida a alguém, e não lhe importava (naquele momento) que estivesse fazendo seu experimento com restos de corpos de outras pessoas, que tinham vivido e mereciam respeito, que ele estava violando os restos mortais de seus semelhantes. Ele chega a pensar o seguinte, como justificativa para o que estava fazendo: "Para examinar as causas da vida, devemos antes recorrer à morte." E logo através desse egoísmo e loucura do protagonista, percebemos que aquela experiência estava fadada desde o princípio a provocar resultados monstruosos. Que se ele realmente conseguisse dar vida ao que ele estava criando, os resultados seriam os piores possíveis. E que, definitivamente, ele estava mexendo com o que não devia, estava ultrapassando limites, sem ter a capacidade de lidar com as consequências

"O que poderá deter o coração determinado e o desejo resoluto de um homem?"

E eis que ele trabalha loucamente durante dois anos (creio que foram dois anos, já não lembro bem), se tornando irreconhecível para as pessoas ao seu redor, tão focado em seu experimento que já não se importava com nada mais, nem com a família que há muito não recebia notícias suas. Ele então cria um ser mais alto e forte do que qualquer outro ser humano, mais resistente aos climas, com capacidade de ser mais veloz, só que com a aparência de um monstro. Uma aparência capaz de provocar repulsa e pavor em qualquer pessoa. Só que sua criatura ainda não "respirava" e o livro não deixa claro qual é o "segredo da vida" que o Dr. Victor Frankenstein descobriu capaz de fazer alguém começar a respirar, ter vida. Já ouvi falar que em filmes inspirados no livro, isso ocorre através de eletricidade, raios, sei lá.rs Nunca vi nenhum filme sobre esta história, então não sei como é feito nos filmes. Mas no livro, quando eu passei pela cena, não entendi como aconteceu, pela minha leitura da cena eu digo que não ficou claro. Enfim... 

"Depois de dias e noites de esforço e cansaço inimagináveis, logrei descobrir a causa da geração da vida; e, mais importante, tornei-me capaz de reanimar matéria morta."

Depois de muitos esforços, ele finalmente consegue o que tanto queria: sua criação estava viva. Ele tinha se tornado o Criador de um ser humano único (ou algo próximo de um ser humano), tinha realizado o seu sonho. E o que ele faz quando a Criatura abre os olhos e sorri para ele?! Foge desesperado.

Sim, sabíamos desde o princípio que Victor era um covarde, um homem fraco e mimado, acostumado a ter o que queria, mas que não tinha maturidade nenhuma para lidar com suas próprias atitudes. Enquanto sua Criatura ainda não respirava, tudo estava perfeito. Ele estava feliz da vida, todo orgulhoso de si, com a certeza que a faria viver. Mas quando consegue que a Criatura tenha "fôlego de vida", se desespera. Percebe o que fez e foge, deixando à própria sorte o pobre coitado que não pediu para existir. Alguém que embora já fosse tecnicamente "adulto" em tudo era como uma criança inocente, jogada num mundo desconhecido, abandonada pelo pai, pelo seu Criador. É claro que ele iria colher as consequências de suas atitudes, embora pensasse que fugindo e se recusando a encarar o que tinha feito tudo ficaria perfeitamente bem. 

"E tu, no entanto, meu criador, detestas e rejeitas esta tua criatura, à qual tua arte te liga por laços que somente é possível romper pelo aniquilamento de um de nós. Estás disposto a me matar. Como te atreves a brincar assim com a vida?"

E o livro vai girar em torno justamente das consequências do que o Dr. Victor Frankenstein tinha feito, ao brincar de Deus e fugir de suas responsabilidades, abandonando seu "filho", fingindo que ele não existia. A história já começa anos depois, através das cartas trocadas entre um jovem aventureiro chamado Walton e sua irmã Margaret. Durante uma viagem, Walton e sua tripulação acabam encontrando um homem quase morto e o aceitam em seu navio, dando a ele todo o cuidado necessário na tentativa de que ele se recupere. Este homem doente é Victor. Logo, Walton começa a ver o desconhecido como um amigo e os dois se aproximam muito. Tudo isso ficamos sabendo através das cartas que Walton escreve para a irmã. 

Atormentado por seu passado, pelo terror que ele provocou e ao ver no amigo alguém muito parecido com ele em suas ambições de mexer com os mistérios da natureza, Victor decide contar toda a sua história e implora para o amigo não cometer os mesmos erros que ele cometeu. Assim, somos levados ao passado e descobrimos tudo o que aconteceu...

"Lembras que sou tua criatura; deveria ter sido teu Adão, mas parece que acabei como o anjo caído do qual tiraste a felicidade por pecado nenhum."

No trecho acima, um dos que mais me impactou, a criatura, atormentada por toda rejeição sofrida e pela forma como seu próprio criador queria sua morte, faz uma comparação com a história bíblica. Reflete sobre o fato que ele deveria ter sido para Victor como Adão foi para Deus, mas em vez disso acabou condenado como Lúcifer, o anjo caído que se transformou em demônio após ter desejado ser como Deus, ter tentado ocupar o lugar de Deus. Só que a diferença entre a criatura e o anjo caído é que ela não tinha cometido nenhum pecado. É essa injustiça, essa dor que mais machuca a criatura. Saber que não tinha feito nada para merecer a maneira como Victor a tratou e como queria sua destruição.

Claro que não vou contar tudo o que se passou entre criador e criatura porque seria spoiler, mas digo que essa é uma história que se fixa em nós por todas as reflexões que ela provoca, pela revolta que sentimos por todas as injustiças cometidas contra a Criatura e contra outros personagens no livro. A sensação de impotência, de não poder mudar coisas que até nos dias de hoje se repetem, como falhas do Poder Judiciário, preconceitos, descaso, a falta de empatia de muitos... O livro vai ter como tema central as questões referentes a relação entre um criador egoísta e irresponsável e sua criatura abandonada, mas também vai trazer muito da responsabilidade da sociedade pelas pessoas que ela rejeitou. O livro nos faz refletir sobre crianças abandonadas por suas famílias, pessoas humilhadas e seriamente afetadas pela sociedade... Enfim... Nós acabamos pensando em muitos assuntos e o que fica  ao término da leitura é uma sensação de tristeza. É algo parecido com o que sentimos quando lemos Capitães da Areia, do Jorge Amado.

"Tu, que és meu criador, serias capaz de destroçar-me em pedaços, triunfante; lembra disso e então me diz por que deveria eu apiedar-me do homem mais do que ele se apieda de mim?"


A autora aborda a seguinte discusão: é possível alguém nascer bom e ser corrompido pela sociedade? Se tornar cruel a partir da forma como é tratado pelos outros? E ela própria dá a resposta através do desenvolvimento da história: sim, é possível. Depois de apanhar tanto, de só receber ódio e agressão, um ser humano pode sim se revoltar e romper com a bondade que levava no coração e devolver aos outros exatamente o que estava recebendo deles. 

Frankenstein não é um livro de terror, embora seja considerado um. É muito mais um livro filosófico, creio. Uma história com o objetivo de fazer o leitor refletir... parar para pensar em questões sobre existência, injustiças, discriminação, abandono... A Criatura feita por Victor vai fazer várias coisas horríveis que vão sim nos revoltar, mas são as cenas em que ela conta a versão dela, o que se passou depois que foi abandonada por seu Criador, que nos fazem sentir vontade de chorar, que nos atingem a alma. Por uma coisa chamada empatia. Ao nos colocarmos no lugar dela, nos imaginando abandonados à própria sorte e recebendo de TODO MUNDO apenas ódio e violência, conseguimos compreender o que a levou a se tornar o que se tornou. Eu odiei a Criatura?! Sim, a odiei pelas coisas horríveis que ela fez. Mas também sofri muito por tudo o que ela passou. Eu pude compreender sua dor. E meu maior desprezo era pelo Victor e por aqueles que contribuíram para destruir aquela Criatura, destruir sua essência, os sentimentos bons que ela tinha. Eu senti muita tristeza e revolta com esta história. 

É fácil falarmos que não faríamos isso ou aquilo quando não passamos pelo que o outro passou. É muito fácil julgarmos de fora. Falta muito no mundo a capacidade de sentir empatia, de se colocar no lugar do outro. Se as pessoas pensassem mais no seu próximo, se refletissem antes de tomar uma atitude que pode causar mal ao outro, afetar a vida da outra pessoa... O mundo com certeza não seria o caos que é. Não seria um lugar perfeito e livre da maldade, claro. Não sou ingênua. Mas com certeza não seria o que é hoje. 


Leitora apaixonada por romances de época, clássicos e thrillers. Mãe da minha eterna princesa Luana e dos meus príncipes Celestino e Felipe (gatinhos filhos do coração). Filha carinhosa. Irmã dedicada. Amiga para todas as horas. Acredita em Deus. E no poder do amor.

6 comentários:

  1. Oi Luna, sua linda, tudo bem?
    Eu já vi algumas adaptações desse livro, mas até hoje nunca li o livro, ainda não tenho uma edição desse clássico. E sempre acho que estou perdendo em não ter feito sua leitura. Acho que tanto o amor quanto o ódio podem ser ensinados, o meio infelizmente sempre influencia o ser humano. Gostei das reflexões que o livro levanta. Vou colocar ele como meta para conseguir finalmente lhe dar uma chance.
    bjs.
    cila.

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  2. Oi, Luna!
    Eu AMO Frankenstein! Dos clássicos de terror é o meu favorito. Sim, eu considero um terror, mesmo tendo todas as características que você mencionou e sua análise do livro foi simplesmente perfeita! É possível odiar e sentir empatia ao mesmo tempo? Eis aí um bom exemplo.
    Bjs
    Lucy - Por essas páginas

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  3. Oii!

    Eu acho que nunca tinha lido uma resenha dessa obra atraves dessa perspectiva. Achei bem interessante sua visão sobre o enredo. Mesmo não sendo um livro que eu me atraio para ler, gostei de entender seus pontos e critica.

    Beijinhos,
    Ani
    www.entrechocolatesemusicas.com.br

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  4. Oi Luna!
    Mesmo nos filmes clássicos de Frankenstein eu sinto empatia pela criatura, pois ela não pediu por nada disso. Lendo sua resenha deu para perceber que essa história vai mais ao fundo, tocando mais nos nossos sentimentos, a criatura é uma vítima de uma pessoa cruel e isso é revoltante. Quero muito ler esse livro, pois fiquei curiosa sobre todo o enredo e o que aconteceu com Victor e a criatura. Obrigado pela dica, parabéns pela resenha, bjs!

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  5. Oi Luna, tudo bem? Não lembro de já ter lido algo a respeito de Frankenstein. O pouco que sei são comentários que ouço aqui e ali. Interessante você mencionar Ágatha Christie, é uma das minhas autoras favoritas desde que era adolescente. Sempre gostei muito de sua escrita e como ela consegue nos envolver até a última página. E não sobrou nenhum faz bastante tempo que li, mas recentemente assisti a série e gostei do resultado. Quanto a fazer justiça "com as próprias mãos" é um assunto que rende muitas reflexões. Quem foi prejudicado sempre se sentirá no direito de revidar concorda? Quanto a Frankenstein ter criado um "monstro" e não se responsabilizar por isso também é questionável. Responsabilidade tem a ver com maturidade e muitas vezes não somos tão adultos. Um abraço, Érika =^.^=

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  6. Oi, tudo bem?
    Eu sempre tive medo de ler esse livro por achar que era de terror. Mas depois que minha irmã leu e amou, fiquei com muita vontade de dar uma chance. Uma das coisas que ela falou é que não é mesmo um livro de terror e que foi uma leitura bastante reflexiva. Gostei muito da sua resenha e quero dar uma chance para esse livro algum dia.
    Beijos!

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